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Boys and Girls (I)
25-10-2003
 
Percebi, também, que esse processo era realizado de uma forma natural e que lhe está implícito o acto de compreender. Neste sentido podemos considerar que a este mecanismo de busca, está subjacente a procura de uma certificação de normalidade. A normalidade que advém do aferirmos a nossa audição através de gostos que se exprimem numa maioria dita “normal”. Aquilo que nos é dado ouvir transforma-se num mero acto de atenção, que é antes de mais um teste pessoal, às necessidades de aspirar pertencer a um colectivo normalizador e protector, uma síntese de muitas formas de ouvir e das quais uma avaliação desinteressada do que se escuta, permite que se possa falar de um gosto colectivo e uniformizado. Baudelaire afirmava que “o gosto exclusivo do Verdadeiro (nobre aptidão, quando aplicada aos seus fins próprios) oprime o gosto do Belo” (1). De facto, a verdade manifesta-se como um elemento de análise fundamental, desde que não impeça a captação do belo. Se as pessoas continuam mais preocupadas com a sua verdade - a verdade pessoal, o que é ainda mais grave - do que sujeitarem as suas aptidões, mais ou menos esclarecidas à aceitação pura do belo, esse mecanismo de segurança que se traduz em entender automaticamente o que se escuta deixa de parte as experiências mais interessantes do processo aberto de compreensão. O que interessa aqui, passa por se saber o que de facto se quer, quando se desconhece as limitações que este tipo de atitude contém. Mas quando percebemos que associadas a estas razões defensivas estão outras que se prendem com a protecção da sua integridade pessoal, a manutenção do seu território, do seu espaço de influência, a validade da sua força de interacção no grupo, podemos ver como estes interesses estão distantes das verdadeiras atitudes de pesquisa do belo. A arte acaba, para todos eles, como mais uma actividade social, política e económica, numa pura retórica de estilo. ”A nossa visão da vida moderna tende a dividir-se em dois níveis, o material e o espiritual: algumas pessoas dedicam-se ao «modernismo», encarado como uma espécie de puro espírito, que se desenvolve em função de imperativos artísticos e intelectuais autónomos; outras situam-se na órbita da «modernização», um complexo de estruturas e processos materiais – políticos, económicos e sociais – que, em princípio, uma vez desencadeados, se desenvolvem por conta própria, com pouca ou nenhuma interferência dos espíritos e da alma humana” (2). O problema que aqui se coloca, é a sua tónica numa acentuação negativa sobre como pode ser feita com sucesso a passagem do pensamento ao acto, sem que nenhum destes momentos se profane ou actue destructivamente sobre o outro. Ambos se revelam premonitórios, na medida em que se distingue perfeitamente o «homem fáustico como aquele que faz a história» do outro, que permanece e vive no velho mundo. A esmagadora maioria das pessoas já não existe em «pequenos mundos», a vivência actual talvez só consiga representar, de uma forma metafórica, a nostalgia dos nossos mundos perdidos. Talvez a arte possa representar essa mesma representação e por isso mesmo sempre sujeita a uma atmosfera interior de destruição, de perda e de morte. Talvez assim, as pessoas tenham também muita dificuldade em conviver nas melhores condições neste difícil contexto, onde a sensação de colapso eminente se frutifica nas mais pequenas formas de incerteza e onde as ansiedades buscam afanosamente posicionar- -se por mecanismos mais activos onde o peso da componente ideal é sucessivamente descarregado através de uma prática activista, militante, voluntariosa e como tal «modernizadora». Quando este processo é adoptado pelos artistas, aqueles que, por princípio, deveriam saber conviver neste terreno sem perdas de identidade ética, apresenta-se nos seus gestos o resultado de uma grande pobreza que não vai além de pequenos vícios de um mundo “fáustico”, sempre a confrontar com a morte a sua reles vida sobrevivente. Julgo que, actualmente, as relações dos artistas e de todos os que circulam na sua órbita se apuram por questões de mera retórica, entre o político, o social e o económico. Não acredito pois, numa arte orientada para exprimir os valores do belo. As relações públicas ocupam um, cada vez maior, espaço de intervenção nos mecanismos em que se organizam e as estruturações dos interesses comerciais andam aí para extrair mais dinheiro. Vivemos no espectáculo da vida elegante onde tudo é fugaz e difícil de apreender. Estabelecemos ligações superficiais que nos permitem não arriscar muito os nossos conteúdos, ou porque não existem e dão muito trabalho a transmitir ou porque nem sequer são necessários. Existimos segundo um regime de mínimo comprometimento onde o público e o privado quase deixaram de ser relevantes. Somos só uma imagem. Sabemos que existem muitas músicas urbanas. Elas são uma consequência de um drama existencial que a grande cidade vai proporcionar a partir do séc. XIX. “No prefácio de Spleen de Paris, Baudelaire proclama que la vie moderne exige uma nova linguagem: «uma prosa poética, musical mas sem ritmo, suficientemente flexível e suficientemente rude para se adaptar aos impulsos líricos da alma, às modulações do sonho, aos saltos e sobressaltos da consciência» (3). O que impressiona é que Baudelaire fez estes poemas em 1860 e neles estão contidos os pressupostos essenciais da arte para o século seguinte. Pode interpretar-se que a música sem ritmo, suficientemente flexível e suficientemente rude, terá sido pela primeira vez transformada em conceito num tempo e num espaço que não lhe diz respeito e que foi vista com uma extrema clareza. Apesar deste facto, ainda hoje continuamos a sentir a arte e a música segundo uma visão conservadora contra a sublevação e a renovação permanente dos modos e das formas. Sendo que esta é ferozmente imposta por aqueles que dominam o mercado, tudo fica subjugado a uma competição implacável onde não agir equivale a pura e simplesmente desaparecer. Inovar para manter o negócio, controlar para manter o lugar, prescindir da livre vontade, acatar as maiorias, aceitar a pressão do colectivo, passaram a ser alguns pontos de convergência de uma desintegração que actua como força mobilizadora, logo integradora. Todos nós aspiramos à estabilidade, mas esse estado significa, entropia, morte lenta. Talvez se possa compreender, agora, como se torna essencial para a sobrevivência artística existir um processo de mutação constante nas estratégias da concepção de projectos. Pertencemos ao imenso grupo dos banalizados e, depois disto tudo, tenho dificuldades em pensar no que me vai acontecer a seguir, ainda que os sinais que vá sentido por parte dos que estão perto de mim me deixem inquieto. Não é que esteja preocupado em achar um futuro, esse contrato entre mim e o Diabo. Milhões de pessoas são vítimas, todos os anos, de desastrosos planos de desenvolvimento, da incúria de tantos e tudo parece estar a ser naturalmente aceite. Aquilo que possamos fazer neste estado de coisas parece-me muito pouco. Na arte, na música, como na vida todas as classificações são abusivas. Os cobardes constroem sempre estratagemas. Já tinha pensado sobre algumas das formas de acção que se manifestam entre os que criticam, os que promovem, os músicos e os outros. Elas revelam uma crença evidente na história como o único meio eficaz de tornar eterna a sua actividade; eles olham para trás e acreditam no que vêem, sentindo que essa realidade é uma parte intrínseca das suas vivências. Em vez de se sentirem desorientados, com as inúmeras dificuldades de se ter de viver num meio onde o movimento e o sobressalto fazem parte integrante de um quotidiano em mutação permanente, sentem o imenso prazer do participante que, acima de tudo, se estrutura na crença de que é actor e que a sua acção muda alguma coisa. Não somos parte em lado nenhum, passamos o tempo a gerir incapacidades de compreensão nesta impetuosa pressa que nos atormenta e, arrastados sem controlo, somos lançados na corrente dos acontecimentos diários, onde tudo se dilui, metamorfoseia e desintegra em algo irreconhecível. A produção e o consumo tornam as actividades humanas cada vez mais internacionais e cosmopolitas. A relação local sucumbiu e desapareceu dando lugar a uma escala planetária de comunicações, de elevado índice tecnológico e de uma requintada sofisticação. A automatização desenvolve-se a um ritmo vertiginoso, numa busca desenfreada de caçar o instante. Colapsar a diferença de tempo entre o acontecimento e a sua recepção informativa, deve ser uma das metas a atingir neste drama intensamente burguês e capitalista em que vivemos. As ideias deveriam ser uma forma de gerar novas ideias, por isso se julga que todas as que nos aparecem de uma maneira definitiva não têm interesse. Quando alguém utiliza a possibilidade de falar de um concerto e de transmitir o que pensou, num modelo fechado, absoluto e final, imediatamente perdeu uma oportunidade de desenvolver uma ideia geradora. Vivemos rodeados de ideias mortas, que não contêm qualquer incitamento à criação. São narrativas exaustas. Desprovidas de vida interna. Enclausuradas num redil de pontos previsíveis, onde o prazer de descobrir estagnou. A retórica do jazz, em Portugal, apresenta estes tiques anquilosados numa repetição compulsiva. Existe também, nalgumas prosas, um desprezo categórico, quase histérico, pelos homens que fazem a música e, noutras escritas, o excesso de uma multidão que idolatra, cega na sua avidez mitológica. Todos os regimes totalitários tendem a levar ao extremo a colectivização de todos os ideários, a partir do qual se estruturaram. O jazz cai por vezes neste tipo de tensões, onde o músico/mito além de ser uma construção de uma mente colectiva frustrada, se manifesta antecipadamente superior antes de tocar qualquer coisa. Não posso apoiar este tipo de impulso, embora o entenda e perceba a sua utilidade numa sociedade que já não possui deuses para acreditar. Existe uma puerilidade de circunstância que leva as pessoas a procurarem mitologias alternativas no mundo da arte. O Jazz que se anuncia nas revistas, nos jornais, nos meios de comunicação é uma música fantasma no meio de formas e símbolos que, há muito tempo, morreram. As pessoas insistem em perder tempo e a ouvir e falar destas coisas, encarnado o espírito próprio de uma modernidade do subdesenvolvimento. Por mais que se escreva, fale sobre o Jazz, ninguém pode controlar as acções e as interacções que nele vão decorrendo. A arte será sempre uma espécie de zona livre onde todas as forças psicológicas e sociais podem-se desenvolver espontaneamente. Quando o que se diz tem o peso de ser uma ideia fechada, como atrás referi, resta o ridículo de se sentir a fragilidade dum acto falhado. Tudo em Portugal soa a acto falhado. Sinto que falar só de jazz é algo de muito pobre, quando se pode alargar todas as visões para os amplos domínios da arte. Não tenho qualquer tipo de reserva em relação ao jazz, mas percebo quanto é limitado olhar os acontecimentos exclusivamente pelo seu prisma, por isso, muito do que quero referir deverá ser considerado numa perspectiva mais vasta. Os fenómenos da existência aplicam-se indiscriminadamente a todas as parcelas da actividade artística e os pontos de vista que só dizem respeito a uma música, a uma obra de arte se não forem acompanhados de uma compreensão mais global, serão mais uma crónica desinteressante e inconsequente. Vivemos no sistema das aparições deslumbrantes, fachadas luminosas, espectáculos triunfantes, decoração, estilo, brilhos e afins. Os rostos estão vazios, encontramos esboços de beautiful people por toda a parte, uma esfuziante harmonia, preservada no tumulto de tanta gente vulgar em movimento. Quiseram que tudo fosse sendo estruturado assim, entre habilidosos esboços de fantasia, vida degradante, nas capitais do mundo civilizado. A arte assemelha-se, cada vez, mais a anúncios onde a esplendorosa elegância intelectual transforma o mundano em provinciano. Somos material de propaganda, sem sermos pagos para isso. Esta é a cultura que temos. Onde está a aventura espiritual da modernidade tantas vezes proclamada pelos especialistas? Hoje andam totalmente envolvidos nas campanhas propiciadoras das suas carreiras. Procuram o sucesso do seu negócio como um vulgar capitalista. Estão pesados, solenes, não sei se usam bigode, não têm olhares, são indeterminados, mas ressalta das suas faces um semblante orgulhoso de alegria e obediência. São estes os nossos artistas e os seus acólitos. A cultura é actualmente uma actividade cada vez mais duvidosa e pretende cativar para o seu desfile de vaidade os espíritos mais livres. Um desfile que reflecte os movimentos rápidos dos expedientes, as agilidades malabaristas dos oportunistas, as graciosidades hipócritas das avaliações, os sentimentos sem lágrimas pelo outro, um brilho gorduroso nos olhares concorrentes e uma cor suficientemente kitcsh que ilumine tudo isto. Todas as vítimas possuem algumas características básicas comuns que lhes permitem exercer cabalmente as suas funções nos destinos que lhes estão reservados. Uma vítima não existe sem um destino, uma profecia, qualquer coisa que antecipe o seu estado de bode expiatório ritual. É honesta e conscienciosa, tímida e modesta e afasta-se das intrigas que mantêm vivos e interessados os seus colegas de vida. Já sabia que as intrigas e os gracejos ajudam a passar o dia a muita gente. Mas a vítima assume neste domínio um papel essencial. Congrega dentro de si estas energias, e existe nela uma espantosa predisposição natural para assumir esse peso do ridículo alheio. Neste sentido ela possui um papel de higiene social ao dissolver conflitos e receber as culpas quando são necessárias exportar. As pessoas aspiram a coisas tão vulgares como comunicar livremente e reconhecerem-se como iguais, mas as vítimas incomodam-nas na realização destes desejos, porque os seus olhos questionam-nos e querem respostas sobre os fins da tagarelice reinante. Os meios de comunicação, em vez de unir as pessoas, vão produzindo um abismo enorme entre todos, separando ainda mais as ténues relações existentes. As vítimas começam a parecer-se demasiado com as que não o são. Existe uma inefável ambiguidade entre todos que passaram a ser o molde, a partir do qual se elaboram enigmas. Eles têm o olhar da esfinge. Compreendo que todos pensem que a simpatia pelos fracos e oprimidos fez parte de um certo maneirismo intelectual racista que o colonialismo português haveria de transformar em ideias politicamente sociais. No entanto, do que se pensa à sua prática vão muitas e grandes distâncias. No jazz em Portugal, com uma guerra colonial a decorrer, esta deferência com os negros americanos sempre me soou a um obscurecimento perverso, um prazer criado pelos seus sofrimentos. O fascínio da degradação tornou mais evidente esta estranha reacção hiper-colonial. Nada melhor do que um país como o nosso para se encontrar as pessoas que fossem capazes de idealizar uma sociedade onde, aos negros competia o espectáculo e aos outros o seu fruir. Sempre me dei muito bem com as arrumações de ideias e quando, actualmente, revemos umas quantas manifestações de quem escreve sobre jazz, ainda cheias desse espírito colonial eminentemente racista, fico perplexo a pensar se eles não estarão a perceber o que são. Só pode reivindicar, nos dias de hoje, a cor da pele, quem pretende referir que esse facto constitui um qualquer argumento na arte ou na música. Quem o faz, desconhece os pressupostos essenciais de uma sociedade moderna. Para alguns a menoridade étnica persiste como mecanismo compreensível de uma certa realidade e o conceito constituinte de ideias como a do branqueamento do jazz, é ainda uma forma larvar dessa divisão geográfica do homem segundo a sua disposição natural em continentes, tratando-se de uma espécie de taylorismo darwinniano, que nem as delícias libertadoras de uma revolução democrática em 25 de Abril de 1974, conseguiu expurgar do nosso pensamento comum. As perseguições políticas, religiosas e sociais tornam-se momentos endémicos de existência que estão sempre a reaparecer como desenvolvimentos diferentes segundo as interiorizações do tempo e do espaço onde se sublimam e repercutem. (1) Marshall Berman, Tudo O Que É Sólido Se Dissolve No Ar, Edições 70, Lisboa 1989, pág. 154; (2) Ibid, pág. 145; (3) Ibid, pág. 162; Boys and Girls (II)
Ivo Martins
 
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