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Raul Vaz Bernardo
02-09-2008 00:00
 

José Duarte - como descobriu o jazz?

Raul Bernardo - talvez da pior das maneiras: por uma questão racial. Sendo originário das colónias, estava farto de ouvir, desde criança, que os "pretos" só sabiam tocar batuque. Em adolescente, quando comecei a dançar ao som do Armstrong comercial e a sentir o sofrimento dos blues, conclui que não poderia ser assim. Comecei a ouvir bem e, sobretudo, a apreciar a parte instrumental da música, para além das palavras. Claro que a abordagem inicial foi bem cedo abandonada, embora me tenha familiarizado um pouco tarde com as grandes bandas brancas como a de Stan Kenton, ao contrário de solistas como Stan Getz, Jack Teagarden e muitos outros. 

JD - os primeiros músicos que ouviu?

RB -o primeiro, jazz puro e duro, foi um trio de Lester Young, com o Nat Cole (não era ainda King) e Buddy Rich. Ainda hoje consigo cantarolar até o solo de piano de "Back To The land". De Lester parti para o Basie, depois para o Ellington (sobretudo por causa do som do Hodges)  e todo o universo do jazz. Lembro-me que não gostei nada dum Miles que ouvi (na altura um Vogue que era original Blue Note) com uma balada realmente dramática "I'll Wait for You". Outro dos primeiros que me entusiasmou foi um blues dum concerto dum quarteto de Gerry Mulligan, que este anunciava assim "let's play the blues while you get seated". A minha aprendizagem foi toda baseada na intuição, num bom ouvido e, igualmente, numa boa memória que ainda tenho. Também apreciei o aspecto comunal da música em que cada um pode cantar a sua personalidade.

JD - as primeiras preferências? porquê?

RB - Armstrong, pela humanidade da sua música, Lester pela profunda descontracção e imaginação a fazer música, Parker pela velocidade do seu pensamento e emoção e, finalmente, Rollins, pela força e firmeza do seu discurso.

JD - quais foram os mais importantes saltos qualitativos que o Jazz deu neste quase século de sua vida?

RB - Seria leviano da minha parte referir apenas as sacudidelas que foram o be-bop com Gillespie e Parker ,os monumentos musicais de Ellington, a invenção de Armstrong com o Hot-Five, a finura de Bix Beiderbecke, a originalidade dos "tristanóides", a crueza subtil de Ornette, a paranóia de Bud Powell, as arquitecturas de Coleman Hawkins. O jazz deu formidáveis saltos qualitativos, pelo menos nos primeiros três quartos da sua existência. Todos eles contribuíram para formar uma música inesgotável. Não é uma questão de ser museológico, mas pode-se viver uma vida colorida e dinâmica a estudar apenas um tipo de jazz ou um determinado solista

JD - há quanto tempo publica textos jazz na imprensa portuguesa?

RB - há mais de vinte e cinco anos. Não me atrevia ao princípio, mas um amigo (sabes quem é) incentivou-me, disse que devia transmitir a minha experiência e gosto. Tenho procurado manter coerência e honestidade com as minhas opções e nunca opinar "ex-catedra", até porque não tenho bases para isso.

JD - Miles Davis foi importante para o jazz ou deixou muita (con)fusão?

RB - acho que o Miles foi um pioneiro no sentido em que sempre procurou fazer algo diferente do que antes fazia. È um exemplo nisso, vejam-se os seus quintetos. Depois enveredou para uma fase mais consentânea com os tempos que corriam, na década de 70, mas mesmo assim, pese embora um certo comercialismo em que se deixou enredar, sempre foi um artista franco. Olha deixa-me dizer-te algo, com a idade passei a apreciar mais a sua fase "populista", isto é, na altura odiei "On the Corner", agora ouço com outros olhos, com mais respeito. Aliás quando ouvi o Miles no primeiro Cascais Jazz senti que havia um novo "olhar" no jazz.

JD - o jazz tem raízes africanas?

RB - bem, tem, seguramente, na forma de soltar os sentimentos interiores e no surto rítmico. Agora, digo, não fossem as influências europeias transmitidas através da absorção dos cânticos religiosos e música popular europeia, absorvidas pelos escravos africanos da Louisiana, não teríamos a música de jazz como ela é, como se propagou universalmente. Seria como, sem menosprezo, pois muito aprecio, como música das Caraíbas ou Brasil .

JD - sua opinião sobre o estilo free? europeu? afro-americano? é o futuro?

RB - a minha experiência, devo confessar, já cristalizou em mim um certo ideal que não é elástico. Gosto de experiência e inovação, mas não de fórmulas radicais. Para mim, que me considero um clássico, também existe criatividade no trabalho sobre formas já estabelecidas por outros. É sempre possível ser fresco. Jarrett ainda o é, Konitz também. Não precisam de estilhaçar a sua coerência estética. Irrita-me o ser "novo" por imperativo geracional. Mesmo assim, prefiro o free afro-americano de Chicago ao free europeu, mesmo que tenham tendência a confluir, algumas vezes.

JD - como define swing?

RB - para mim, é uma dialéctica sensorial entre uma batida métrica simétrica e uma descontracção baseada na variedade de acentuação  e fluência. O beat de Sidney Catlett ou Jo Jones, a distensão de Gordon ou Zoot, a torrente de Ornette ou o arejamento de Billy Higgins. Melhor dizendo, como o outro, é indefinível.

JD - swing é essencial para uma peça ser jazz?

RB - Julgo que desde os tempos de Duke Ellington e algumas das suas peças ou do "Picasso" de   Hawkins, que sabemos que pode haver bom jazz sem swing, embora se o tiver é mais do meu gosto.

JD - as três principais big bands na História do jazz? porquê?

RB - Basie, Ellington, Herman. Basie, porque trouxe para o jazz orquestral o relaxe rítmico das "grandes pradarias". Ellington, porque provou ser possível a complexidade dentro da simplicidade. Herman, porque provou que o élan orquestral nunca esmorece com grandes músicos e orquestradores.

JD - o público de jazz em Portugal é conhecedor da matéria?

RB - se formos avaliar pela profusão de concertos e manifestações de jazz pode ser que seja.  Agora se percebem o que muitas vezes lhe é oferecido, tenho dúvidas, mas deve ser a minha idade a falar...

JD - acha Keith Jarrett um jazzman overrated? porquê?

RB - não, não acho. É um pianista notável que tem jazz da ponta dos pés aos cabelos (carapinha ou não ?) . Se as pessoas o conhecem pelos concertos a solo muito bem; eu amo-o porque faz grande jazz em trio, pela interacção com os parceiros e pelo material sobre o qual improvisa.

JD - opinião sobre o panorama dos concertos jazz em Portugal em particular os da Gulbenkian e os das festas Jazz no S.Luiz?

RB - as festas do jazz no S. Luís são fundamentais para revelar os jovens aprendizes que devem sempre que poder mostrar o que sabem. Concertos, creio que há uma certa inflação. Para pôr os músicos portugueses sobreviver, acho muito bem. Noutros casos, já não estou muito de acordo.

JD - o melhor concerto jazz que presenciou?

RB - mais emoção, o do Miles, em 1971, com o Jarrett endiabrado no piano fender. Maior ternura e comunicação, o Dexter de 1980 no Cascais Jazz. Vi um solista de jazz, um homem que me comunicou toda a sua vivência e amor à música.

JD - uma discografia jazz básica com meia dúzia de cds?

RB - para não ser óbvio, Jazz Messengers (com Horace Silver), Duke Ellington "and his mother called him Bill", Coleman Hawkins "Coleman Hawkins meets Ben Webster", Clifford Brown-Max Roach "Study in Brown", Louis Armstrong-Ella Fitzgerald "L.A. and E.F.", Lee Konitz-Warne Marsh "L.K. / W.M."

JD - jazz nasceu em 1917 com o primeiro que na altura se gravou - dacordo?

RB - sim, para o começo da sua vida foi a O.D.J.B. e a sua gravação, mas do anterior que se fazia em Nova Orleães, infelizmente não há testemunho.

JD - gravar jazz trai sua estética base como Música de Improviso que é?

RB - acho que não, embora, por exemplo o Rollins acha que perde espontaneidade ao ser gravado. Sou a favor da concentração obtida em estúdio, sem estar a pensar em cair bem em quem está a ouvir. Sou pelo disco, sem dúvida.

JD - acha que Google fez desaparecer os divulgadores de jazz neste planeta?

RB - o Google não, agora a mediocridade que surge nalguns blogs (há grandes excepções), faz-me pensar nisso. Para investigação o Google é fundamental.

JD - o melhor tenor jazz? Coltrane - Lester - Hawkins ou quem?

RB - todos esses são grandes, mas eu iria para outro, o Rollins.

JD - pensa que o jazz com todas as fusões que tem cometido se tem despersonalizado avançado - com tudo e todos nesta Vida - para a Morte?

RB - enquanto houver quem ouça um solo do Hank Mobley, o jazz ir-se-á aguentando

JD - opinião sobre Jason Moran?

RB - é o novo génio do piano, não do ponto de vista apenas instrumental, mas conceptualmente. O concerto em Janeiro no Porto sobre o concerto do Monk no Town Hall, provou-o.

JD - a melhor secção rítmica jazz que existiu ou existe? porquê?

RB - há tantas boas, Tyner-Garrison-Jones, Garland-Chambers-Philly Joe, Hancock-Carter-Williams, Basie-Green-Page,Jones, mas a minha é aquela que pulsava e respirava em uníssono, Wynton Kelly-Paul Chambers e Jimmy Cobb. Não precisam de ouvi-los com Miles, basta ver o empurrão que criam com Wes Montgomery e Johnny Griffin em "Full House".

JD - obrigado Raul Vaz Bernardo


 
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