José Duarte - porquê a Croácia e Zagreb? Amália Baraona - Eu estava a trabalhar na Albânia desde 2003 e em 2009 surgiu uma oportunidade de contrato em Zagreb. Vim e ainda cá estou... JD - quando começou a estudar canto? e canto jazz? AB - Na realidade nunca estudei canto. Não sei ler música, só sei ouvir, sentir e cantar. No entanto, no fim dos anos 90 em Bruxelas, conheci uma cantora de jazz romena, Anca Parghel, com quem tive as minhas primeiras aulas de canto, o que me abriu novos horizontes. Desde então, esporadicamente inscrevo-me em workshops com cantoras de jazz, nomeadamente Maria Pia De Vito e Deborah J. Carter, ou procuro aulas particulares para lidar com problemas específicos que tenho, o que me permite continuar a aprender (sempre) e a desenvolver a minha forma de ouvir e de cantar. JD - ‘Menescantando' é o nome de seu cd e são 12 composições de Roberto Menescal - por e para quê? AB -O "Menescantando" é o meu tributo ao Roberto Menescal, compositor, guitarrista, produtor, homem de rara generosidade e abertura de espírito e um dos criadores da Bossa Nova, a quem um dia mandei um email e que me respondeu oferecendo-me a sua ajuda para o projecto que na altura pensara desenvolver. Com o passar dos meses e da nossa correspondência, o projeto inicial que era a continuação do meu primeiro álbum sobre Mulheres foi-se lentamente transformando, e passou a ser sobre a obra de Menescal que se tornou a minha constante fonte de inspiração. E assim nasceu este "Menescantando" JD - Baraona sem h seus antepassados são portugueses? que afinidades tem com o país Brasil e sua Música? AM - Portuguesíssimos Baraona sem h por um erro de registo quando nasceu o senhor meu pai, que nunca voltou a pôr o famoso h e assim ficámos sem ele. Nasci em Portugal em 1966, mas cresci no Brasil, na cidade de Vitória no estado do Espírito Santo, onde nasceram a Nara Leão e o Roberto Menescal Quando eu era miúda, as nossas saídas eram entre amigos. Não havia computadores, cyber cafés. Mas havia sempre um violão, um cavaquinho, às vezes uma flauta, e passávamos noites a cantar Não é fácil falar sobre a minha afinidade com o Brasil, mas costumo dizer que sou portuguesa de nascimento e brasileira de coração e trago sempre comigo uma saudade dos dois países que me viram nascer e crescer. A minha maior referência musical além do jazz é, sem dúvida, a Bossa Nova e a MPB. JD - considera seu cd um cd jazz? AM - Se fosse uma "purista do jazz" responder-lhe-ia categoricamente que não. Como não sou e trabalhei com músicos de jazz para refletir no CD a influência que o Jazz teve nos músicos que criaram a Bossa e a influência que esta mais tarde veio a ter no Jazz no fim dos anos 50, sobretudo a partir do lendário concerto no Carnegie Hall em 1962, respondo-lhe que talvez não seja um cd jazz, mas jazzeámos bem a Bossa JD - conhece cantores jazz? quais o(s) que prefere? porquê? AM -Claro Ella Fitzgerald é a referência máxima para mim (e para o resto do planeta) pela cor da voz, o swing à flor da pele, o fraseado e riqueza de improvisação e scat. Entre as minhas preferências estão também a Helen Merrill, sobretudo o trabalho que fez com o Clifford Brown, Anita O'Day pelo ritmo e a dinâmica, Chet Baker, pela doçura (é o "meu" João Gilberto do jazz) e por cantar como tocava trompete, Peggy Lee em particular o trabalho que desenvolveu com o primeiro marido Dave Barbour e Shirley Horn acima de tudo como pianista, mas também como cantora (interpretava "Insensatez", do Jobim, maravilhosamente). E não posso deixar de mencionar, ainda que não fosse cantor, Bill Evans, principalmente as gravações no Village Vanguard com o Scott LaFaro e o Paul Motian. JD - escreve ou ensaia arranjos para as canções que canta? no caso ‘Menescantando' como aconteceu? AM - Não. Como lhe disse, não leio nem escrevo música, mas sei o que quero e a maior parte das vezes consigo explicar aos músicos que trabalham comigo o tipo de som que quero ter. No caso do "Menescantando" 90% dos arranjos foram feitos por um jovem pianista jazz de Bari (IT), o Bruno Montrone, que já trabalhara comigo no primeiro cd "Mulheres". Os outros arranjos foram feitos pelo meu marido, Dinko Stipaničev, que co-produziu o álbum comigo. JD - porque escolheu aqueles músicos e vozes do coro e o próprio Menescal? AM - O Bruno Montrone que acima refiro, o Dario Di Lecce (contrabaixo), o Fabio Delle Foglie (bateria) e o coro "Pentasamba" vêm todos de Bari, na região da Puglia em Itália e gravitam naquilo a que eu chamo: o planeta "Il Pentagrama" O Pentagrama é uma escola de jazz, criada pelo guitarrista italiano Guido Di Leone que está cotada entre as 10 melhores escolas de jazz de Italia, pela publicação Jazz IT. Conheci o Guido na Albânia há cerca de 8 anos e foi no estúdio do Pentagrama que gravei o meu primeiro cd em 2010 e que descobri estes jovens talentos do jazz italiano com quem não hesitei em voltar a trabalhar neste segundo álbum. O Dinko Stipaničev, multi-instrumentista croata com quem partilho vida e música, juntou-se a nós pouco depois da saída do "Mulheres" e tocou connosco em Itália, além de desenvolver comigo um projecto sobre a história da Bossa Nova. Quanto ao Menescal, eu queria muito que ele participasse no álbum, mas não tinha coragem de lhe pedir, pois ele já me ajudara muito mandando-me partituras e gravações de músicas dele e eu não queria abusar Mas um dia, a propósito da música que ele compôs com a Joyce em homenagem à Nara Leão ele escreveu-me "se quiser, eu posso me intrometer na gravação de "Nara", é só me deixar uma pista e eu ponho uma guitarrinha, o que acha?". Quase desmaiei quando li esse email, aceitei imediatamente e a equipa ficou completa JD - conhece a discografia de Luciana Souza? opinião AM - Conheço a discografia da Luciana Souza e, ainda que não goste de tudo o que ela faz, acho que a Luciana tem um trabalho magnífico como intérprete e como compositora. Gosto da diversidade temática e estilística das suas escolhas, da poesia de Neruda à homenagem a Chet Baker, de Elizabeth Bishop a Caymmi ou Haroldo Barbosa. Há sempre um projecto, um fio condutor, uma pesquisa naquilo que faz. E gosto muito da originalidade dos arranjos no seu trabalho, nomeadamente no "Neruda" e neste último "Duets III" em que participa o Toninho Horta. JD - e a de Hermeto Pascoal esse ‘velho' compositor Mestre prof encenador instrumentista próximo do jazz que é brasileiro e desconhecido em Portugal? AM - Desconhecido em Portugal? A sério? Não me diga que o Sivuca também é desconhecido no nosso país? Conheço o Mago dos sons e confesso que nem todos os sons que o Hermeto Pascoal cria são de fácil digestão para mim, mas o homem é mais do que um músico, é um monstro, uma instituição "Chorinho para ele", "Bebê" e "O Ovo" são imperdíveis. E mencionei o Sivuca porque o concerto que fizeram juntos em 2000 ou 2001 é fantástico JD - já cantou na Croácia? e em Portugal? onde? AM - Cantei como convidada no antigo BP Clube em Zagreb em 2010, que era o clube de jazz de referência na Croácia, fundado ainda na antiga Jugoslávia pelo famoso vibrafonista croata Boško Petrović (falecido em 2011). Cantei em outros clubes de jazz da cidade, no Festival de verão Stross em Zagreb que decorre anualmente de maio a setembro e este ano o Dinko e eu cantámos em Porec, na região da Istria, no âmbito do Valamar Jazz Festival. Em Portugal apresentei o projecto "A Velha Bossa Nova" em 2011 no Centro Cultural de Cascais e na Fábrica Braço de Prata e em 2012 tive concertos no Cascais Jazz Clube com o apoio da nossa querida Maria Viana, e no Duetos da Sé em Lisboa. JD - você fala português e brasileiro e certamente outra(s) croata também? AM - croata ainda não... O meu marido diz que eu estou "overloaded" com todas as línguas que falo e que tenho de apagar pelo menos uma do disco duro para deixar espaço para o croata JD - porque canta em brasileirês? AM - canto como falo. Quando estou com portugueses falo português e com brasileiros "brasileirês" Por isso não concebo cantar a música brasileira com o sotaque português. Para mim soaria falso. Tendo crescido na Terra Brasilis, não seria natural cantar de outra forma senão com o sotaque original que faz parte do balanço da Bossa . JD - dê-nos sua opinião crítica sobre os cantares de Marta Hugon e Sara Miguel e Maria Mendes e Mila Dores? AM - Cantoras jovens, portuguesas, com paixão pelo jazz e com formas de o abordar muito diferentes, o que só o enriquece. Não conheço suficientemente o trabalho da Sara Miguel e da Mila Dores. Da Sara só sei que lançou o primeiro álbum "Monção", também pela Numérica, algumas semanas antes do meu e da Mila ouvi algumas coisas na internet mas não o suficiente para dar uma opinião critica. Gosto da Marta Hugon e da Maria Mendes. A Marta amadureceu extraordinariamente desde o seu "Tender Trap" e neste último trabalho surpreendeu-me por serem praticamente todas composições originais, suas e do Filipe Melo que "fogem" ao jazz tradicional e que denotam um trabalho pessoal não só vocal mas de composição que marca a identidade da Marta Hugon como artista. Acho que a Maria Mendes tem uma voz e uma técnica vocal admiráveis e o seu registo do "Chorinho pra ele" do Hermeto Pascoal deixa isso bem patente. Ainda que não mo tenha perguntado, gostava de acrescentar a esta lista duas cantoras portuguesas de quem gosto muitíssimo: a Sofia Ribeiro pelas escolhas estilísticas, pela técnica vocal, pela cor da voz e pela forma como interpreta o que canta e compõe. Gosto muito da diversidade dos seus projectos como o duo com o contrabaixista belga Marc Demuth, o trabalho com o colombiano Juan Andres Ospina e este ultimo álbum com o guitarrista italiano Bartolomeo Barenghi. E "last but not least", gosto muito da Paula Oliveira, generosa como cantora e como pessoa, excelente pedagoga (tive algumas aulas particulares com ela que não esquecerei), com um trabalho consistente e com paixão pelo que faz. JD - a voz em jazz é um instrumento - dacordo? AM - A voz é um instrumento, não só em Jazz. Para mim a voz é o instrumento mais delicado, mais difícil e mais imprevisível que existe e, como o coração, tem razões e reacções que a própria razão desconhece JD - canta blues? sua opinião sobre blues na sua forma e intenções - e o ‘rhythm ‘n blues? AM - não canto blues. Se o fizesse soaria falso e forçado. Acho que o Blues tem uma ligação intrínseca com o estado de espírito, alma, a cultura e a própria vida. Como o fado. É preciso ter uma certa melancolia dentro de si. Em termos de vocalistas, acho que a Bessie Smith e principalmente a Billie Holiday encarnam este género musical de forma magistral. E, ainda que isto soe estranho, considero a Peggy Lee uma excelente "blues lady" pela melancolia que carregava dentro dela. Não conheço suficientemente ‘rhythm ‘n blues para me pronunciar. JD - quando canta improvisa ou canta sua versão decorada? AM - canto a minha versão, mas não gosto da palavra "decorada". Isso lembra-me os tempos de escola quando tínhamos de aprender de cor os nomes dos rios, as capitais, etc. e depois desfiávamos aquilo sem questionar nem sequer pensar Não improviso pois sinto-me insegura para o fazer, mas dependendo dos músicos que me acompanham, do público, da atmosfera, faço os meus "floreados" de vez em quando JD - seu reportório AM - Essencialmente Bossa Nova (António Carlos Jobim, Roberto Menescal, Carlos Lyra, Johnny Alf, etc.), clássicos da MPB como Noel Rosa, Ary Barroso, Dorival Caymmi, Haroldo Barbosa e gosto muito do trabalho da Joyce e do Chico Buarque. Em termos de Jazz, o meu repertório cobre essencialmente os clássicos (Gershwin, Porter, Irving Berlin, Harold Arlen) do "American Songbook". JD - qual sua opinião sobre a cena jazz portuguesa? AM - gostaria de conhecer mais e melhor a cena jazz portuguesa, pois acompanhá-la de longe nem sempre é fácil. Essencialmente acho que é uma das melhores e mais antigas cenas jazz da Europa que, por algum motivo, permanece desconhecida do grande público estrangeiro. Como os nossos vinhos Quando vim para os Balcãs em 2003, trazia comigo alguns álbuns do Bernardo Sassetti (que nos deixou cedo demais...), da Paula Oliveira e Bernardo Moreira, a que mais tarde se juntaram outros da Joana Machado, da Marta Hugon, etc. e por estes lados ninguém os conhecia. Os únicos nomes conhecidos além fronteiras eram a Maria João e o Mário Lajinha. Parece-me que tem crescido extraordinariamente não só em quantidade de músicos com as "novas fornadas" vindas da escola do Hot, da Universidade de Aveiro, da Lusíada, etc., como em qualidade e talento. Há bons músicos, clubes, escolas, festivais e público, ainda que continue a ser um público restrito e não haja a divulgação e reconhecimento que esses artistas merecem... JD - em Zagreb na Croácia (Hrvatska) há jazz há clube festival concertos músicos? AM - Em relação a Lisboa ou Porto, Zagreb é um deserto jazzistico Há excelentes músicos de jazz que estudaram em Graz ou Klagenfurt, visto que não há escola de jazz na Croácia. Infelizmente, há cada vez menos clubes jazz... Quando cheguei a Zagreb em dezembro de 2009, havia 3 clubes, nomeadamente o BP Club que há pouco referi, e que fechou em 2011 e o Jazz Club na Gunduliceva que também cerrou portas nesse ano. Desde então, pequenos espaços abriram e voltaram a fechar. Hoje resta um clube na cidade, onde se ouve jazz ao vivo esporadicamente o que é curto, muito curto Há a Big Band HRT, com quem a Maria João cantou o ano passado, e a Big Band HGM que está ligada ao circuito mundial das "Jeunesses Musicales". Quanto a festivais tem alguns, e bons, principalmente no verão, nomeadamente o Valamar Jazz Festival em Porec, na Istria, onde desde 2010 têm passado nomes como Enrico Rava, Galliano, Tânia Maria, Dave Holland e Diana Reeves. JD - obrigado Amália Baraona Lapa 13 jan 2013 Zagreb 20 jan 2013 |