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João Moreira dos Santos
07-07-2011 00:00
 

José Duarte - que importância teve sua frequência da escola jazz do HCP e da Academia Amadores de Música?

João Moreira dos Santos - Foram ambos muito importantes, sobretudo a escola do Hot Clube pois foi lá que aprendi realmente a linguagem e a essência do jazz. Era muito novo quando entrei, tinha uns 16 anos, e antes disso tinha estudado um ano na Senófila, que é hoje a JB Jazz. Devo-o ao meu irmão (guitarrista) pois foi ele que soube da existência da escola e que a procurou nas páginas amarelas comigo. Se ao menos houvesse internet na época, o processo teria sido bem mais fácil pois para quem não pertencia ao meio do Jazz o Hot era algo meio obscuro e distante... Mas chegado lá, tive oportunidade de aprender com professores muito empenhados e sapientes, nomeadamente o Sérgio Pelágio e o Zeca Neves. Naquela época - estamos a falar do final dos anos 80 - estava em voga o jazz eléctrico e foi bom o Hot ter correspondido a essa minha fase pois se tivesse encontrado professores muito ortodoxos provavelmente teria desistido. Lembro-me das aulas de História do Jazz pelo então presidente, o Rui Martins, mas as figuras mais marcantes foram o Eng.º Bernardo Moreira (Binau) e o João Moreira, que era apenas um ano mais velho do que eu, mas já estava num patamar altíssimo como músico. Através do convívio com eles, que eram mais clássicos nos seus gostos jazzísticos, uma das coisas que sucedeu de imediato foi trocar o baixo eléctrico pelo contrabaixo, que estudei com o Bernardo Moreira. O Binau provocava-nos imenso nas aulas, fazia afirmações irónicas sobre as quais eu, como jovem, ficava sempre com um sentimento de ambiguidade... E foi ele que me incentivou a não desistir da minha licenciatura, isto numa fase em que eu ainda tinha veleidades de ser músico de jazz, não obstante o escasso talento para o efeito... E o Hot foi também importante porque promoveu na época um conjunto de workshops com músicos que me inspiraram muito e que eram instrumentistas de topo a nível internacional. Refiro-me, por exemplo, ao John Abercrombie (cuja técnica e sonoridade nos deixou boquiabertos nos espectáculos que realizou no Palácio Fronteira), Dave Liebman (um homem duro e exigente, mas um grande pedagogo) e Red Mitchell. Depois, havia também a escola informal do Hot, que era talvez a mais importante... Isto é, os concertos semanais na cave, a que eu assistia muito regularmente e também gravava. Tenho várias cassetes de gravações desse período. De repente, podia entrar pela porta um Pat Metheny (como entrou) e fazer uma jam-session ou podia organizar-se um espectáculo com o Eddie Henderson, o Abercrombie, o Lee Konitz ou o Benny Golson e o Curtis Fuller. E essa "escola" ensinava muito pois era ali que se aprendia o vocabulário do Jazz e a atitude do Jazz. Um dos homens que encarnava esse espírito era o baterista Greg Bandy, todo gingão e "malandro", de bengala e chapéu, cheio de estilo. Essa geração do Jazz era quase cinematográfica. Tinha um charme e um carisma que se perderam, mas que ficaram ligados indelevelmente à história do Jazz.

JD - como conheceu o jazz?

 

JMS - Não sei se fui eu que conheci o Jazz se foi ele que me conheceu a mim... Digo isto porque ele foi entrando de forma discreta e subtil na minha vida e quando um dia dei por isso já estava a estudar no Hot Clube e a esgravatar os arquivos da Biblioteca Nacional para aprender sobre a sua história entre nós. Era a tal fase dos 16/17 anos. Lembro-me de, com 9/10 anos, o ouvir, lá ao fundo, nas bandas sonoras das telenovelas brasileiras que se viam na quinta da minha avó paterna. O que eu gostava mais, pensando bem, eram aqueles momentos com a orquestra do Glenn Miller, ainda que não soubesse sequer quem tocava.. Com a adolescência, comecei a tocar heavy-metal com o meu irmão e uns amigos brasileiro e chegámos até a ter um grupo. Curiosamente, o Jazz também aí se insinuou, chegando-me através de um solo histórico do Tommy Iommi (Black Sabbath) que tem uma clara sonoridade jazzy. Aquilo ficou-me no ouvido e a ideia de poder improvisar agradava-me pois era sinal de liberdade criativa. Uns anos mais tarde a minha mãe comprou um carro em segunda mão a um colega de emprego. Ele era, e é, um grande amador de Jazz e "fez o favor" de deixar esquecida no automóvel uma cassete que tinha num lado uma cantora divina e no outro uma orquestra de swing em versão "Duke Ellington hooked on Jazz". Aquela voz, sobretudo, fascinou-me e andei anos a tentar descobrir a quem pertencia pois a cassete nem sequer estava identificada... Era, tão só, a Sarah Vaughan e o disco - How long has this been going on? (Pablo, 1978) - é um dos seus melhores pois para além das suas soberbas interpretações ainda conta com músicos como Oscar Peterson e Ray Brown.

 Desde aí nunca mais parei de ouvir Jazz e fui descobrindo-o através de músicos como Miles Davis, Stéphane Grappelli, Betty Carter e tantos outros que tive a felicidade e privilégio de ainda poder ver e ouvir ao vivo na fase inicial desta minha paixão.

JD - qual a sua apreciação sobre o período histórico actual do jazz e seu futuro?   jazz durará para sempre?

JMS - Não sei se o Jazz durará para sempre, mas espero que a mensagem e simbolismo que ele representa permaneçam pois são essenciais à evolução da Humanidade. O Jazz é fruto de uma época histórica em que um povo (os negros norte-americanos) era subjugado, segregado e humilhado e abusado por outro (os brancos). E a via que os primeiros encontraram para se emancipar foi a da cultura, provando ao mundo que as suas origens, pele e saber eram tão válidas e civilizadas como quaisquer outras. Essa foi uma mensagem que mesmo em Portugal poucos queriam ouvir... No fundo, o Jazz foi uma revolução não dos cravos, mas das notas musicais... Sem disparar um único tiro, os negros norte-americanos conquistaram o mundo e a seguir começaram a ser aceites de outra forma na sua própria pátria. O jazz é para mim uma música de liberdade, de diálogo inter-racial e internacional, um idioma que fala da necessidade de saber respeitar e escutar o outro para com ele poder interagir construtivamente. Espero que essa mensagem, sobretudo, nunca se perca. Quanto ao período actual do Jazz penso que os musicólogos talvez possam compreendê-lo melhor pois são estudiosos dessa matéria. A mim parece-me que estamos numa fase de mudanças subtis que se vão tornando muito evidentes com o passar dos anos, um género de revolução silenciosa. Hoje em dia o Jazz está intimamente ligado à cultura popular dos vários países que o adoptam e é cada vez mais uma música do mundo e dos mundos de cada povo. Creio que acabámos de cortar há poucos anos o cordão umbilical com a tradição, aquele Jazz pós bebop e de standards. Vivemos hoje em dia um período em que os músicos privilegiam os seus próprios originais, o que não tem nada de errado pois actualmente até me parece estranho por que razão um músico português, alemão ou norueguês há-de ter de tocar exactamente como se tivesse nascido no Harlem ou no Bronx. Não nasceu... foi criado em Lisboa, em Berlin ou em Oslo e tem uma linhagem musical própria que está inscrita no seu ADN cultural. Creio que saber refazer o Jazz no âmbito do contexto musical de cada indivíduo e cultura pode contribuir em muito para o renovar. Aliás, outro dia dei por mim a pensar que foi precisamente o sangue novo que criou o Jazz, quando os negros norte-americanos começaram a fundir a sua cultura, de tradição africana e caribenha, com a ocidental. E fui parar a um pensamento que é este: que outro povo pode abraçar o Jazz e trazer-lhe algo completamente novo? Aí, ocorreu-me a China... quem sabe... Do Japão, por exemplo, não veio nada de novo e foram os músicos ocidentais, como o Tony Scott e o Dave Brubeck, quem tentou criar algo a partir da cultura nipónica. Talvez com os chineses suceda o inverso e tenhamos alguma surpresa... Sinceramente, não é nada que me preocupe. Como costumo dizer, é apenas Jazz... Preocupo-me mais com a evolução da Humanidade, ou, melhor dizendo, com a actual involução neste tempo de falta de valores e de um materialismo exacerbado e sem ética. Perdemos o Swing algures nos anos 70 com figuras como o Reagan, a Thatcher e outros que impuseram ao mundo um neoliberalismo desenfreado, desleal e desumano.

JD - seu trabalho jazz com a imprensa escrita? como considera a divulgação jazz em Portugal hoje nos semanários e diários?

JMS - Comecei em 1995 a escrever para a "A Capital" e lembro-me de pensar "espero que o José Duarte, que também escreve para este jornal, não leia os meus textos!". Aquilo foi uma aventura porque na verdade foi um convite que surgiu inesperadamente da parte de um colega de faculdade que era jornalista lá e me indicou à editora de cultura. E eu já não sei se aceitei porque gostava tanto de Jazz ou porque adorava o jornalismo. No fundo, foi um misto de ambos. O meu primeiro trabalho foi fazer a crítica do concerto de um dos meus ídolos no Estoril Jazz: o Ray Brown. Durante cerca de cinco anos assisti a praticamente todos os concertos que se realizaram na grande Lisboa e tive oportunidade de entrevistar e conhecer muitos músicos que admirava e outros que estavam a aparecer. Fui, por exemplo, a primeira pessoa a entrevistar a Diana Krall em Portugal, correspondendo a um apelo "desesperado" da editora pois nenhum jornalista a queria entrevistar e a "senhora", diziam-me da tal editora, "está no Estoril Sol disponível". Depois, apareceu através de si, José Duarte, a oportunidade de escrever para  O Papel do Jazz, que foi uma revista bilingue e inovadora. Fiz apenas, se bem me recordo, uma entrevista ao McCoy Tyner embora tivesse sido convidado a escrever uma breve história do Jazz em Portugal. Parece que o José Duarte já adivinhava a minha futura "vocação" para o assunto. Sucede que sou muito perfeccionista e senti que naquela época não tinha conhecimento suficiente para fazer algo realmente interessante e válido. Seguiu-se, anos mais tarde, a revista All Jazz, onde comecei a publicar artigos sobre os primórdios do Jazz entre nós e também críticas de discos de Jazz. Quando a revista terminou decidi que tinha de continuar e fundei o meu blogue, o Jazz no País do Improviso. O nome veio da conjuntura política e económica que o país já então atravessava e do célebre "discurso da tanga" do Durão Barroso. Tenho também publicado artigos de fundo no jornal Expresso e na revista Blitz. Quanto à divulgação do Jazz na imprensa... Creio que vivemos na década passada o apogeu da mediatização deste género musical entre nós, facto que dificilmente se repetirá a tal escala. Às vezes esquecemo-nos que para além da divulgação nos media, tivemos duas revistas (All Jazz e Jazz.pt), surgiram duas rádios temáticas (Europa Lisboa e Marginal), a Antena 2 abriu-se ao Jazz e o próprio José Duarte conseguiu com o jornal Público realizar uma importante edição discográfica que realmente recolocou o Jazz no mapa cultural dos portugueses. Por seu turno, o Diário de Notícias editou uma colecção de banda desenhada sobre grandes figuras do Jazz. Foi algo absolutamente extraordinário e concentrado em apenas 10 anos. Além disso, surgiram os blogues e tudo isso correspondeu a um boom de festivais, escolas, músicos, editoras, etc. A televisão foi o parente pobre no meio de toda esta mediatização.  Hoje em dia estamos a regressar a pouco e pouco ao antigamente e creio que muitos de nós ainda não percebemos que esta súbita expansão está em risco e que o panorama do Jazz em Portugal ameaça voltar a encolher. Com efeito, o Hot apagou-se muito depois do incêndio e falta-lhe reposicionar-se pois já não está sozinho como instituição ligada ao Jazz em Portugal, a Rádio Europa Lisboa vai abandonar o Jazz, a Marginal de Jazz já pouco ou nada tem, os jornais dificilmente têm capacidade económica para voltar a investir em projectos como os citados e faltam críticos de jazz qualificados para suceder à geração que tem carregado a tocha do Jazz nas suas páginas. Depois da saída do Curvelo do Público este jornal não voltou a encontrar um sucessor capaz de lhe fazer justiça e o mesmo se passou no Diário de Notícias com a saída do Manuel Jorge Veloso.Ser crítico de jazz não é aliciante economicamente e os jornais cada vez mais se regem pelas audiências e pelo mainstream, ambos péssimos conselheiros culturais e no que se refere ao interesse público e à função social dos media.. "If it bleeds it leads" continua a ser, e cada vez mais, a sua triste máxima. O problema é que nós, como sociedade, entramos nesse jogo e não conseguimos libertar-nos dos velhos padrões de consumir o lixo informativo que diariamente nos servem e que, bem observado, não cumpre na sua maioria qualquer propósito nem serve qualquer causa digna desse nome. Não é o Jazz que sai a perder, mas sim todos nós como sociedade. O jazz no meio disto tudo é tão vítima como qualquer informação científica, cultural, social, espiritual que seja relevante, mas que fica na gaveta em "benefício" dos escândalos, das gaffes, das novelas e das caras conhecidas. Estamos a empobrecer não só financeiramente, mas sobretudo intelectualmente, humanamente e espiritualmente.

JD - já trabalhou com jazz na tv? sua opinião sobre os diferentes programas com jazz que conheceu na tv portuguesa

JMS - Nunca trabalhei com jazz na televisão, mas em meados da década passada estudei essa hipótese com a RTP-N. Cheguei a apresentar uma proposta detalhada com o meu amigo Paulo Sérgio, que actualmente apresenta na TVI o programa Autores. Faltou-nos o famigerado patrocinador e nesta época pouco ou nada se faz nos media sem o sponsor. Sucede que o sponsor quer audiências e o Jazz não é música de massas logo o sponsor torce o nariz e aposta antes em mais do mesmo em vez de optar por contribuir para algo novo que tem mais probabilidade de se evidenciar. Houve vários programas que me marcaram quando era mais jovem. Para começar, os programas do Luís Villas-Boas, que via "religiosamente" pois adorava as estórias que ele contava e gostava de ver as imagens de concertos antigos. Mas o mais influente foi o do Paulo Gil, o Som da Surpresa, pois apanhou-me numa idade em que já estava mais maduro para absorver o seu conteúdo e também porque era, além disso, muito bem feito e a música que ele apresentava era muito bem seleccionada. Lembro-me de ver o Stan Getz, o Dexter Gordon, a Carmen McRae, tantos gigantes do Jazz. O Paulo Gil é um dos nossos melhores comunicadores na área da música e tenho pena que esteja inactivo nesta área pois faz falta alguém que cative os públicos para algo mais do que o óbvio e o habitual. Outro programa que via e apreciava era o Outras Músicas, do José Duarte, porque não só era muito criativo como tinha também um ecletismo que me permitia expor-me a vários músicos que desconhecia. Creio que foi através deste programa que descobri a fabulosa Mercedes Sosa. Além disso o programa era muito dinâmico, sempre com pequenos oráculos em forma de legenda a pontuar os momentos musicais. E, para finalizar, ainda quero referir o Zona Jazz, que apresentou ao longo dos anos 80/90 uma série de músicos portugueses ou radicados em Portugal. Foi um contributo muito importante da RTP para institucionalizar o Jazz, que ainda era visto entre nós como algo marginal e menor.

JD - na divulgação jazz na net e na rádio que trabalhos jazz tem?

JMS - Na net, tenho a minha participação no site norte-americano All About Jazz e a fundação e autoria do blogue Jazz no País do Improviso, que está prestes a chegar às 500 000 visitas, embora actualmente tenha pouca disponibilidade para o animar tanto como o fiz nestes últimos 8 anos. A minha vida profissional e outros desafios noutras áreas têm-me impedido de o fazer, assim como os livros que venho escrevendo em ritmo acelerado. Na rádio, estou actualmente a escrever e apresentar O Espírito do Jazz, emitido na Antena 2 aos Domingos à noite. Antes disso, responsabilizei-me pela selecção jazzística da CSB Rádio, que foi realmente a minha primeira experiência neste meio, que cada vez mais prefiro à televisão.

 

JD - a sua bibliografia

JMS - São cinco livros até agora. Tenho publicado a um ritmo quase louco, mas creio que tenho já vários sinais para abrandar pois o mercado editorial funciona de uma forma cada vez mais indigna e já se está a pagar aos autores com uma percentagem em livros, o que não é realmente compaginável com o investimento de tempo e dinheiro que envolve escrever um livro de investigação. Em 2005 publiquei o meu primeiro livro nesta área, Duarte Mendonça, 30 anos de Jazz em Portugal, em 2007 publiquei O Jazz segundo Villas-Boas, em 2008 editei, com o António Rubio, o Jazz na Terceira: 80 anos de história e em 2009 seguiu-se o Jazz em Cascais: Uma história de 80 anos. Este ano editei Josephine Baker em Portugal. E para se perceber como funciona o mercado editorial, sobretudo ao nível da distribuição dos livros nas lojas, basta dizer que já é praticamente impossível encontrar qualquer um dos meus primeiros quatro livros nas grandes cadeias... É um mercado que aposta apenas nas novidades e cuja engenharia financeira passa por devolver os livros às editoras ao fim de seis meses, o que permite às lojas refinanciar as novas aquisições. É um esquema e sistema absolutamente histérico e  que vai levar, mais cedo ou mais tarde, a uma profunda crise nas editoras pois é impossível, a meu ver, sustentar a longo prazo o ritmo alucinante de novas edições cujo prazo de vida é seis meses... A lógica negocista fez dos livros um bem perecível, o que é algo completamente anti-natura pois os livros são companheiros para a vida. E mesmo em termos de ciclo de vida de um "produto" é absurdo: um automóvel dura 4 anos, um computador dois ou três, mas um livro só está seis meses nas prateleiras... Na verdade, qualquer um destes produtos poderia durar muito mais, mas as marcas descobriram e incentivaram o fenómeno da obsolescência, o que lhes permite vender muito mais... Mais uma vez, somos nós, como consumidores, que mantemos o sistema. Eu tenho um automóvel há 10 anos e só agora estou realmente a pensar trocá-lo. Por acaso até é um carro de que tenho alguma pena em desfazer-me pois ali sentaram-se grandes nomes do jazz, desde o Branford Marsalis, passando pela Sheila Jordan, Herb Geller, Kirk Lightsey, Peter King e tantos outros. É o "carro do Jazz", como lhe chamo, e de Jazz Saab ele...

 

JD - o que o leva a abordar em seus escritos acontecimentos relacionados com jazz via décadas: com Duarte Mendonca 30 anos de jazz em Portugal, uma História de 80 anos de jazz na ilha Terceira, 80 anos de jazz em Cascais?

JMS - Sempre me senti atraído pelos mistérios e estórias desconhecidas do passado. O investigador que há em mim compraz-se em estar centenas de horas em bibliotecas e arquivos a recuperar a memória, seja do Jazz, seja de outro qualquer assunto que me apaixone. Lembro-me, aliás, e talvez isso o explique, de querer ser arqueólogo quando era criança. E só não me licenciei em história porque um tal de Cavaco Silva, quando era primeiro-ministro, lembrou-se de implementar uma coisa chamada PGA (Prova Geral de Acesso), que basicamente serviu para dificultar o acesso ao ensino superior público. A mim (e a todos nesse ano), que tinha média de 18 valores no 12.º ano, calhou-me dissertar sobre futebol, que é algo que desconheço quase em absoluto e que, como se está a ver, é muito relevante para decidir o destino académico de um aluno... Essa prova baixou-me a média de que necessitava e lembro-me que nesse ano de 1989 também se fez na Universidade Nova de Lisboa uma prova de acesso cuja dificuldade era enorme até para historiadores já diplomados, como pude comprovar. Em resultado disso, terminei noutro curso, mas numa privada e esse foi precisamente o ano em que as privadas começaram a despontar neste país... Se conto este episódio aqui é porque acho importante que situemos os fenómenos no seu contexto para melhor os podermos perceber. Curiosamente, o Ministro da Educação que criou essa PGA é filho de um dos grandes pioneiros do Jazz em Portugal! Mas a veia de historiador e investigador ficou e sempre que entrava numa empresa para trabalhar na área da comunicação a primeira coisa que fazia era escrever e partilhar a história da instituição, que nunca existia de forma estruturada ou completa. Para mim é-me difícil vincular-me a algo sem conhecer o seu percurso. Creio que o meu interesse pela história do jazz se insere nesta dinâmica. Sempre senti necessidade de perceber como é que este género musical tinha chegado até nós e que estórias e personagens o tinham acompanhado. Não se pode ser Homem sem conhecer a história da Humanidade e creio que também não se pode ser músico ou amador de Jazz sem conhecer o que está para trás. Quanto mais não seja porque, como disse George Santayana, "Quem não conhece o passado está condenado a repeti-lo". Mas nós em Portugal valorizamos pouco a história, infelizmente. Não compreendo como é que não existe neste país um museu dos descobrimentos quando até temos o pavilhão de Portugal completamente desaproveitado. Esse museu podia ser um pólo turístico diferenciado, sobretudo dirigido ao turismo dito sénior, que procura qualidade e história. A mesma coisa se aplica a projectos que tenho, como seja o Parque do Jazz em Cascais ou a Casa do Jazz em Cascais. Mas neste contexto de crise... Acresce ainda que escrever sobre o passado é também uma forma de honrar aqueles que ajudaram a construir os alicerces da minha paixão. Mais uma vez, em Portugal olhamos pouco para os que nos antecederam e para a obra que deixaram. E o problema é que essa memória, se não for escrita, perde-se e um dia não há história para contar e ficamos com um buraco negro. Tenho entrevistado muitas pessoas e recolhido muito material que de outra forma se perderia. Tenho fotografias que só as pessoas da época sabem datar ou identificar. De que nos serviriam um dia sem essa informação? Seriam completamente "mudas".

JD - há relações de Josephine Baker - artista à qual dedicou um livro e um espetáculo em palco - com o jazz?

JMS - Há relações indirectas no sentido em que nos anos 20 e 30 falar de Jazz em Portugal, e não só, era sinónimo de falar na Josephine Baker. Ela foi a primeira grande embaixadora do Jazz na Europa pois actuava com músicos como o Sidney Bechet ou o Claude Hopkins. No entanto, não escrevi o livro sobre a relação de Josephine Baker com Portugal a pensar nessa relação, mas sim na sua fascinante história como espia em Lisboa e Porto durante a Segunda Guerra Mundial, a sua tentativa de adoptar uma criança portuguesa nos anos 50 e o seu desafio a Salazar durante os anos 60. É uma história que se cruza com várias figuras da nossa cultura, incluindo o António Ferro, António Lopes Ribeiro, o pai do Alain Oulman, Hermínia Silva, Beatriz Costa e tantos outros. A Josephine Baker é uma figura inspiradora porque, tal como o Aristides de Sousa Mendes, arriscou o seu status quo e fortuna para defender uma causa - a libertação de França do jugo Nazi - e fê-lo com risco de vida. E tudo isso passou por Portugal. Assim como passou por nós a sua Tribo do Arco-Íris, essa "ONU de palmo e meio", como lhe chamou o Diário Popular, que a Vénus Negra criou na Dordonha, juntando 12 crianças adoptadas em várias partes do mundo, para provar que diferentes etnias e credos religiosos podiam e deviam conviver em paz e harmonia. Não houve muitas mulheres com este espírito no obscuro, materialista e hedonista século XX. Era difícil resistir-lhe e a transcrição para um musical, que estreei no Teatro da Trindade, foi um passo lógico.

JD - onde tem conferenciado sobre jazz e sobre que assuntos jazz?

JMS - Em muitos locais e contextos, a começar pelas lojas FNAC, onde tenho realizado muitos eventos e com continuidade, mas passando também pelo Centro Nacional de Cultura (onde realizei um curso de história do Jazz), Hemeroteca Municipal de Lisboa, Centro Cultural de Cascais, escola da JB Jazz, Academia Guilherme Cossul e Universidade do Algarve. Os temas prendem-se com a história do Jazz em Portugal, o Jazz como idioma de Liberdade, Igualdade e Fraternidade e competências de comunicação para bandas e músicos de Jazz. Esta última conferência, que aproveita os meus conhecimentos enquanto académico e profissional em ciências da comunicação, parece-me importante e é pena que não a possa levar a mais escolas e às licenciaturas em Jazz pois vivemos numa sociedade da informação e é crucial os músicos saberem apresentar os seus projectos e também saberem comunicar com os diferentes públicos. Outra forma que tenho utilizado para de certa forma conferenciar sobre o Jazz e questões ligadas à igualdade racial são os roteiros do Jazz que organizo periodicamente em Lisboa desde 2005. O programa passa por visitar cerca de 25 locais onde o jazz despontou e se afirmou entre os anos 20 e 50 e por contextualizar e enquadrar o que ali se passou de relevante a nível cultural, político e social.

JD - 'Estilhaços' primeiro LP jazz publicado em Portugal com gravação do concerto de Steve Lacy & Steve Potts 5teto em Lisboa em 29 fevereiro 1972 - comentário

JMS - É, obviamente, um disco importante e que pertence por direito próprio à história do Jazz em Portugal. Foi o primeiro disco de jazz gravado ao vivo em Portugal e com edição comercial e isso, só por si, já lhe asseguraria esse estatuto. A presença do Steve Lacy e do Steve Potts enriqueceu, obviamente, o documento, que não é contudo um disco facilmente audível pois é marcado por uma estética que poderia classificar de ruptura, com muita dissonância e agressividade musical. E para se perceber como este projecto foi uma lança em África, importa contextualizar que o panorama da edição de discos de Jazz em Portugal era em 1972 muito diferente do que é hoje. Só para se ter uma ideia, na década passada, entre 2000 e 2009, editaram-se entre nós cerca de 140 discos de jazz português, o que representa mais do dobro de todos os discos editados ao longo da totalidade das décadas anteriores que medeiam entre os anos 50 e 90...  Esta diferença gritante ao fim de 30 anos explica-se em parte, apenas em parte, porque entretanto surgiram na década passada editoras especializadas na gravação e edição do Jazz português ou feito em Portugal, de que são exemplo a Clean Feed e a Tone of a Pitch. Nos anos 70 havia, por exemplo, a Tecla, do Maestro Costa Pinto, e a DARGIL, mas o mercado ainda não estava maduro para permitir um volume de vendas e uma rotação de novidades como temos hoje em dia. Claro que a digitalização do processo de gravação e edição facilitou também muito a edição e tornou-a mais acessível. Dantes gravar um disco era quase um sonho e hoje é uma realidade para qualquer músico com um mínimo de experiência. E ainda bem que é assim pois perdemos muita informação relativamente aos grupos de jazz nacionais que existiram entre os anos 20 e 80, que simplesmente nunca gravaram.

JD - que lhe parece o conhecimento jazz do público português?

JMS - É um mistério... Sempre parece ser maior do que supomos e menor do que desejamos. Infelizmente nunca foi estudado de forma científica e abrangente, o que é um contra senso agora que há tantas licenciaturas em Jazz em Portugal. Essa é, aliás, uma questão que me faz pensar pois se eu, sozinho, produzi cinco livros sobre história do jazz e da música em Portugal, por que razão não chegam ao mercado ou ao nosso conhecimento estudos ou publicações realizadas nessas licenciaturas? Talvez o ensino seja mais virado para a prática musical ou talvez lhes falte uma cadeira de história do Jazz em Portugal, o que, a ser verdade, é assombroso. É até com alguma tristeza que digo que apesar da minha bibliografia nunca nenhuma universidade ou escola com tais licenciaturas me abordou sequer para apresentar lá os livros ou para fazer um workshop ou o que seja. Já fui convidado para ir a outros países, mas aqui apenas a Universidade do Algarve (que nem tem licenciatura na área), através do Zé Eduardo, do Grémio das Músicas, me convidou para realizar um workshop inovador sobre Comunicação e Marketing para bandas de Jazz.  Claro que o meu ego passa bem sem essa distinção, até porque dei aulas na faculdade durante oito anos, embora noutra área científica. Mas é extraordinário como o meio académico do Jazz em Portugal não dialoga com as poucas pessoas que escrevem sobre o assunto... Ou talvez seja só comigo. Por mim, tudo bem, mas que é estranho e lamentável é. E é sobretudo um sintoma da pequenez de tanta gente deste país, que assim só se reduz ainda mais. O que me dizem algumas pessoas, em jeito de confidência, é que eu sou demasiado independente ou não alinhado. Isso assusta muita gente porque um livre pensador é sempre visto como uma ameaça potencial pois ninguém o controla a não ser a sua consciência, os seus princípios e os seus valores. Vivemos numa sociedade viciada em medo e em controle e capelinhas. Não vejo futuro para um Portugal que perpetue esta mentalidade. 37 anos depois do 25 de Abril ainda continuamos, afinal, "orgulhosamente" sós em tantos meios e áreas da nossa sociedade. Mas é um orgulho infantil pois é baseado no medo.

JD - como explica nunca ter ou(ha)vido uma vaia num (mau) concerto jazz em Portugal? só palmas e encores

JMS - Essa é uma pergunta muito interessante. Explicaria da mesma forma como se explica que nunca tenha havido uma verdadeira vaia eleitoral a tantos dos políticos que nos têm governado. É que apesar das críticas, desconfianças, crises, desrespeito pelos direitos básicos e etc, sempre encontramos no poder mais do mesmo e menos do mais... Temos vivido em contínuo encore, quase num hard-core político que se mostra cada vez mais decadente e perverso. E alguém sábio disse, aliás, em tempos que "loucura é fazermos tudo como sempre fizemos e esperarmos ainda assim resultados diferentes"...  Não sei se estaremos todos loucos, mas sou, pelo menos, levado a crer que somos um povo pouco exigente. E somos pouco exigentes a começar connosco próprios. Aquela cultura de "para quem é bacalhau basta" é-nos altamente nociva. Se gostássemos verdadeiramente de nós e dos outros haveríamos de nos esforçar por atingir o nosso maior potencial e dar-lhes o nosso melhor. Tenho esperança de que as novas gerações, sobretudo as que têm possibilidade de estudar lá fora e expor-se a outras culturas, possam inverter esta mentalidade. É urgente fazê-lo. E quem sai da média, já dizia o Villas-Boas, é puxado para baixo pelos que vivem atolados nela. Até ao Saramago tentaram fazer isso, desvalorizando a sua obra e o facto de ter sido Prémio Nobel. Não concordo com a sua ideologia política, mas os seus livros são inspiradores e não podem nem devem ser desvalorizados. Não é por acaso que está traduzido em dezenas de países e que em Espanha foi realmente valorizado. Para mim nada existe isolado do todo. Portanto, não haver vaias nos concertos menos bons é um fenómeno que está em correspondência com tudo o que nos rodeia e ainda somos. Eu já saí a meio de vários concertos... apenas tento fazê-lo enquanto batem palmas pois ainda que não aprecie a sua obra ou atitude não quero desrespeitar o músico. A música ou me eleva e faz encontrar a harmonia ou questionar como pessoa ou então, pelo contrário, causa-me stress emocional e existencial.

JD - jazz aprende-se?

JMS - Tudo se aprende. Se ainda faz sentido ou não aprendê-lo já é outra questão... Coloco-me muito essa questão pois cada vez estou mais interessado em procurar a minha essência. E como nasci em Portugal e faço parte da cultura europeia, creio que se fosse um jovem músico iria aprender o Jazz, pois é uma estrutura musical que prepara e liberta para a improvisação, mas certamente iria tocar algo que incorporasse a minha essência e a nossa cultura. Uma coisa é gostar muito de ouvir Jazz; outra coisa é desejar tocá-lo tal como o tocam os norte-americanos, que o criaram. E não há aqui qualquer ponta de nacionalismo. Apenas procuro a autenticidade. Se me fosse natural como Português tocar jazz, fá-lo ia, mas no meu caso duvido que o fosse. Aprendi a valorizar cada vez mais exemplos como o Jan Garbarek, o Gianluigi Trovesi, o Tony Scott ou o Rão Kyao, a Maria João e o Mário Laginha, todos eles músicos que nasceram no Jazz, mas encontraram posteriormente a sua expressão essencial. Sempre foram contestados pelos puristas do Jazz, mas a verdade é que eles estão apenas a ser fiéis à sua voz interior e, se virmos bem, os músicos que ficam na história e acrescentam realmente algo à música são os que fizeram precisamente isto, apesar de todas as críticas, tabus e cânones existentes até então. O Jazz é um canal de expressão da comunicação de cada um com a sua intuição e criatividade, mas há outros canais tão válidos quanto ele. Não é por ser amador de Jazz que tenho de ser sectário e parcial ou negar tudo o resto.

JD - quais os artistas jazz que destaca no panorama português e estrangeiro?

JMS - Aqueles cuja música lhes vem da Alma e não apenas da mente, das audiências ou do culturalmente correcto. Aqueles que são capazes de me elevar ou de me levar a encontrar-me com o sublime em mim. Aqueles que me transmitem harmonia e paz e que estão em paz consigo mesmos. Aqueles, também, que são criativos, intrinsecamente criativos, e que vêem a música como algo muito para além de um exercício narcísico ou comercial. Aqueles que são generosos com o público e que criam algo que o engrandeça. A nível internacional, as grandes referências foram o Miles Davis, Stan Getz, Duke Ellington. Louis Armstrong, Chet Baker, Sarah Vaughan, Ella Fitzgerald, Betty Carter e Tony Scott. Dos vivos, o Keith Jarrett, Jan Garbarek, Branford Marsalis, Dee Dee Bridgewater, Ahmad Jamal, Clark Terry, Maria Schneider e, sobretudo, o Charles Lloyd. A nível nacional é mais complicado pois não quero ferir susceptibilidades, mas também não quero atraiçoar o meu sentir interior. Aprecio muito a visão e música do Júlio Resende, o Bernardo Sassetti, a Maria João e o Mário Laginha, o Laurent Filipe e o Carlos Barretto, e vejo um enorme potencial em muitos dos músicos mais jovens. São uma geração de ouro, não me canso de o dizer. A questão é que não me basta que o músico seja um bom técnico e fale bem o idioma: é essencial que tenha feito também um percurso interior pois é esse que, em última análise, lhe permite encontrar a sua voz única e original. A Maria Viana, por exemplo, é especialmente tocante nos blues e nos espirituais negros. A Maria Anadon está a fazer um trabalho notável com o cancioneiro português da segunda metade do século XX.

JD - quais artistas jazz entrevistou? onde publicou as entrevistas?

JMS - Têm sido muitos, mas creio que esse é um ciclo que está encerrado pois cada vez mais a música fala por si e cada vez menos sinto necessidade de entrevistar os seus autores. Falam comigo de outra forma, assim como falam com as audiências. No entanto, alguns dos que entrevistei a partir de 1995 foram autênticas inspirações. Estou a lembrar-me, muito especialmente, do Ahmad Jamal, McCoy Tyner, Dee Dee Bridgewater e Sheila Jordan. Para além destes, entrevistei também músicos como a Diana Krall, Jane Monheit, Esbjörn Svensson (semanas antes da sua morte), Helen Merrill, James Cotton, Ben Allison, Aaron Goldberg, Archie Shepp, Houston Person, Patricia Barber, Snooky Young, Jef Neve, Roy McCurdy, Jason Moran, Luciana Souza, Donald Harrison, Jim McNeely, Tord Gustavsen e Roberta Gambarini. Essas entrevistas foram publicadas principalmente no meu blogue e no site All About Jazz e também na revista O Papel do Jazz.

JD - que lhe parece a escolha nos concertos e festivais realizados em Portugal?

JMS -  É difícil dizer porque há tanta variedade que generalizar será sempre uma dada forma de injustiça. Felizmente temos hoje um pouco por todo o país muitos amadores de jazz com sólidos conhecimentos que lhes garantem a capacidade de programar objectivamente. Ainda assim, há algo que me deixa triste e que tento fazer diferente nos festivais ou ciclos que organizo. Como todos sabemos, mais ou menos, existem listas negras de músicos, preferências subjectivas e de clã, pequenas vinganças e pequenos ódios que preferem uns e excluem sistematicamente outros. Ora, creio que o promotor ou produtor tem de estar o mais possível acima dessas pequenas questões pessoais e apenas avaliar a pertinência e interesse de cada projecto musical, o que é sempre algo difícil... Não podemos programar em função das nossas relações pessoais com os músicos. Eu contrato por vezes músicos cuja personalidade me desagrada. Ou teria, só por esse desagrado pessoal, direito de o excluir de um evento organizado com fundos públicos? Claro que não. O que não quer dizer que não se excluam músicos cuja ética e comportamento seja irresponsável ou questionável, mas isso é uma questão totalmente diferente. O nacional porreirismo e a complacência com a mediocridade não funcionam porque há uma responsabilidade com o público e com a nossa consciência que não pode ser posta em causa pelo mau comportamento ou desempenho de alguém, seja ele músico, técnico de som ou outro elemento da cadeia de produção de um espectáculo. Uma coisa é excluir por motivos pessoais, outra coisa é excluir porque alguém faltou aos seus compromissos mais básicos. Outro fenómeno que constato é que, salvo algumas excepções, as decisões de programação ainda são muito autocráticas e pouco colegiais, estando concentradas numa só pessoa e, tantas vezes, nos seus gostos pessoais. Isso é tão mais preocupante quanto os fundos dos festivais sejam dinheiros públicos. Portugal tem pouca cultura associativa e falta-nos o prazer de partilhar decisões em grupo. Talvez ainda sejam resquícios do Salazarismo. Faltam também mais associações ligadas à real promoção do Jazz e que possam encarregar-se de realizar os festivais.

JD - qual a sua opinião sobre a editora portuguesa Clean Feed?

JMS - Tenho sentimentos díspares sobre ela. Como português fico satisfeito com as pequenas lanças que vai cravando noutros países e valorizo o seu profissionalismo e ambição. Acho-os, até notáveis, mas muitas vezes discordei deles pois os métodos de propaganda eram demasiado sectários, e levavam frequentemente a uma sobrevalorização, notando-se também a tendência a querer constituir um clã. Ora, clãs já o Jazz e o país têm em demasia. Penso que com o tempo, a editora amadureceu e está mais institucionalizada e equilibrada. Musicalmente, revejo-me em muito pouco ou quase nada do que editam. É o tipo de música que me faz abandonar um concerto a meio. Mas tem direito a existir pois a música é uma dada forma de vibração e dirige-se a pessoas com diferentes vibrações. Esta, simplesmente, não é a minha. Fala-se muito da Clean Feed, mas ignora-se uma Tone of a Pitch, que também tem feito um trabalho notável e muito estruturado. No entanto, ambas são importantes e estão a construir um catálogo de música portuguesa e não só. Pena é que os media façam pouco jornalismo de investigação e se deixem ir na corrente comum e mais visível pois muitas vezes seguem pelo afluente e ignoram o rio em si. Não é o caso aqui, quero frisá-lo bem, mas vem a talhe de foice pois este é um fenómeno que me preocupa: muitas vezes os mais valorizados não são senão os que se souberam mediatizar ou promover melhor. Este é um dos dramas da nossa sociedade e o que explica que se prefira tantas vezes o sucedâneo ao original, o vazio ao sábio, o demagogo ao estudioso, etc. Quantos actores e músicos de mérito e com uma história notável de vida ficam tantas vezes por entrevistar em benefício de arrivistas culturais, políticos ou do jet set que nada têm para nos dizer e que apenas pretendem promover-se sem nada partilhar, sem nada acrescentar à nossa vida?

JD - qual a sua opinião sobre os cerca de 50 anos de free jazz?

JMS - Parabéns! É um movimento importante, mas com o qual me identifiquei sempre muito pouco. O Ornette Coleman, considerado o pai do free jazz, nunca me tocou musicalmente ou animicamente, mas gosto muito de vários músicos que não sendo ícones deste movimento o praticam pontualmente.

JD - nasceu no ano de 1º Festival Internacional de Jazz de Cascais - tudo se transformou em Portugal depois de 71 e do 25 - comentário

JMS - Tudo se transformou e no entanto pouco ou nada se transformou... Tudo, no sentido em que há um antes e um depois do 25 de Abril no que se refere a ter sido conquistada uma certa Liberdade e Democracia. Nada, no sentido em que, para sermos honestos, temos de questionar que Democracia é esta e que Liberdade é esta.  Um pouco por todo o mundo, vivemos a ditadura das marcas (é imperioso ler o No Logo, da Naomi Klein), do consumismo, das empresas, dos media, da banca, dos interesses e dos lóbis. Seremos realmente livres ou apenas temos a ilusão da Liberdade? Em que medida é livre o empregado de escritório que é assediado moralmente pela hierarquia e que não pode recorrer à justiça (que não funciona), que não se pode despedir (porque está amarrado a um crédito à habitação) e que está refém de uma educação para o status e para a aparência? Que Liberdade tem o jovem condenado a viver a sua vida a recibos verdes num call-center, sem protecção social nem subsídio de férias ou de Natal, preso à casa dos pais por impossibilidade económica de alugar ou comprar a sua? E, pior do que isso tudo, em que medida somos livres da estreita mentalidade comum? E que Liberdade de opinião existe nos media quando impera a auto-censura, o politicamente correcto, as lógicas egoístas e sectárias de grupo de media e a ditadura das audiências? O mesmo podemos dizer de uma Democracia que continua a não colocar no centro o Cidadão, mas sim os negócios e o neoliberalismo. Antes e depois do 25 de Abril, continuamos a ser tratados como números: o Estado tem uma relação puramente contabilística e egocêntrica connosco. Tudo exige, mas falha na justiça, na cidadania, na regulação, na gestão dos bens públicos e no pagamento atempado, preparando-se, ao que parece, para falhar na protecção social e na saúde. Custa-me ter esta visão, que já nem sequer pode ser considerada pessimista, mas o preço a pagar pelo silêncio - e por não termos dito atempadamente "O Rei vai nu" - está por demais evidente. Provavelmente devia limitar-me a falar de Jazz nesta entrevista, mas sou muito mais do que um amador de Jazz, do que um investigador de Jazz, um divulgador ou um promotor. Sou um cidadão atento ao seu país, ao seu tempo e à sociedade que me rodeia. Não somos ilhas; somos parte de uma rede social totalizante que engloba todo o globo e se encontra cada vez mais em estrita interdependência. De que me serve cumprir-me, egoisticamente, só por mim, se sozinho pouco ou nada sou? Ubuntu, dizem algumas tribos africanas quando querem exprimir "Sou quem sou porque somos todos nós". Quanto ao pós 71, é verdade que muito se transformou. O Cascais Jazz foi o berço de todos os festivais de Jazz em Portugal e formou toda uma geração ao possibilitar-lhe o contacto com os maiores nomes do Jazz. Mostrou também que era possível entre nós o Jazz ter público e isso foi muito importante para os desenvolvimentos que se prolongaram até hoje. Só um homem de visão e apaixonado como o Villas-Boas o poderia ter feito. Acho que ainda o valorizamos pouco. O meio do Jazz e o meio cultural português devem-lhe ainda uma distinção que perdure, seja o nome de uma rua, um busto ou algo mais moderno. Sucessivos governos falam da necessidade dos jovens serem empreendedores, mas por que não se valorizam então publicamente aqueles que, como ele, ousaram sê-lo, sobretudo num tempo em que a iniciativa privada era bem mais difícil? Ele assumiu um enorme risco económico, político e social! Chegou a ser detido pela PIDE. Hoje a sua memória e legado estão prisioneiros de outros poderes e outros interesses... Temos muito pouca cultura de partilha genuína em Portugal. Ainda preferimos as Capelinhas à Praça Pública. Falta-nos chegar à Ágora e valorizar o domínio público. O Estado Novo singrou em parte precisamente por este défice na nossa sociedade...

JD -  jazz contemporâneo ter perdido o swing clássico perturba-o?

JMS - Não me preocupa de todo porque ele está nos discos antigos e já é património da Humanidade. Podemos sempre recuperá-lo se o desejarmos e assim evitamos parar o relógio e o curso natural desta música cuja idiossincrasia tem sido sempre a constante mudança e reinvenção. O que me preocupa, sim, é que esta nossa sociedade tenha perdido os valores clássicos, a ética e o sentido do que realmente é importante. Muita gente viveu e morreu para implantar nesta Terra o Humanismo, a Solidariedade, a Liberdade e a Fraternidade. Perder isso é que é verdadeiramente dramático. O resto é "apenas Jazz". É importante, mas não é decisivo nas nossas vidas.

JD - obrigado João Moreira dos Santos

JMS - Eu é que agradeço, José Duarte. Tenho sido leitor atento dos seus livros e crónicas, ouvinte e espectador dos seus programas e é uma honra ser entrevistado por alguém que considero um dos nossos melhores e mais criativos comunicadores e dos poucos que encontrou a sua voz original e única, uma voz que todos reconhecemos, pelo seu estilo inconfundível, seja no papel ou nas ondas hertzianas.


 
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