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A Linhagem da Música Coral Africano-Americana
05-02-2007
 

A LINHAGEM DA MÚSICA CORAL AFRICANO-AMERICANA

(INCLUI BREVE APONTAMENTO SOBRE AQUIJAZZ)

PRIMÓRDIOS DA INVESTIGAÇÃO, ENSINO E DIVULGAÇÃO DA MÚSICA CORAL AFRICANO-AMERICANA

A promoção do património musical negro-americano deveu-se, no pós-guerra civil americana, à diligente e apaixonada divulgação emprestada pelos responsáveis e alunos da Fisk University, radicada em Nashville, sob os auspícios da American Missionary Association. George White, um professor de música, organizou um grupo coral destinado a promover as canções espirituais - os Jubilee Singers. Como os recursos da universidade eram exíguos, resolveu organizar concertos em várias cidades do país como meio de angariar fundos. Essas digressões começaram em 1871, mas só conquistaram o público quando começaram a cantar para assembleias religiosas do Norte, reiterando a sua empatia com a causa da emancipação dos negros, agora livres mas segregados. Entretanto, alcançaram uma notoriedade vertiginosa, confirmada pelas suas prestações na Igreja de Henry Ward Beecher, em Brooklin, frente ao presidente Ulysses Grant e, na antiga potência administrante, perante a rainha Vitória.

O empenhamento promocional dos Fisk Jubilee Singers resgatou essas canções do limbo e tornou-as respeitáveis junto do público americano e europeu: "The so-called plantation songs are among the most striking and appealing melodies that have been found this side of the water."[1] Desta maneira, e segundo Mary Jo Sanna, "Negro Spirituals were the only way whites knowingly and willingly participated in the contributions of  blacks to American culture." (Newman: 1998, 27) Em 1867, J. B. T. Marsh publicou The Story of the Jubilee Singers,With Their Songs, onde reuniu as canções mais populares do repertório do grupo, assim como delineou os contornos da sua breve história.

            O Hampton Institute comparou-se ao Fisk College na senda promocional dos espirituais, se bem que nunca tenha conquistado índices de popularidade tão elevados nem a internacionalização da sua congénere. Acentue-se, além do ensino e da prática musical, o trabalho de investigação de alguns dos seus professores. Destacou-se o estudo pioneiro de Mary Frances Armstrong e Helen Ludlow, vertido no livro Hampton and Its Students. By Two of Its Teachers...With Fifty Cabin and Plantation Songs, arranged by Thomas P. Fenner, de 1874, onde conciliaram a análise teórica e a interpretação com a pesquisa etnomusicográfica. Outra recolha digna de registo, mormente pela novidade dos espécimes coligidos, deve-se a William Barton: Old Plantation Hymns, vinda a público em 1899.

A importância da música coral africano-americana releva, como já se poderá concluir, não só da miríade de participantes que a promoveram e generalizaram, garantindo, por essa via, um sustentáculo para a sua subsistência, mas também do empenho devotado à investigação e ao estudo dessa tradição por pedagogos e etnomusicólogos. Dentre eles, destacaram-se, já no século XX, Camille Nickerson (1888-1966), John Wesley Work (1901-1967) e Willis Lawrence James (1900-1966). Nickerson, uma graduada pelo conservatório de Oberlin, foi professora na Howard University, entre 1926 e 1962, tendo levado a cabo uma importante pesquisa do espólio de canções populares da Louisiana; o segundo leccionou na Fisk University, entre 1927 e 1966, seguindo o testemunho de seu pai, o primeiro etnomusicólogo negro; o último desenvolveu uma relevante actividade de recolha de canções da Lousiana, predominantemente no início dos anos vinte. O labor dedicado destes estudiosos avultou tanto como trabalho de campo e de recolha sistemática de espécimes tradicionais, como também por induzirem um ângulo de análise e de interpretação decorrente da perspectiva africano-americana emergente com a Harlem Renaissance.

Estas menções a professores e estudiosos destinaram-se, unicamente, a iluminar as raízes dessa prática de ensino e de investigação etnomusicológica, pois muitos outros devotados investigadores percorreram idêntico caminho: Frederick Douglass Hall (1898-1982), Oscar Fuller (1904- 1982) ou Warner Lawson (1903-1971), entre tantos outros esquecidos nas folhas de livros. Todos eles investiam num ideal comum: elevar a tradição musical negro-americana ao nível de arte consagrada (highbrow), sem, contudo, denegarem a matriz etnocultural subjacente. A popularidade e o reconhecimento institucional da música coral e de concerto acabaria por motivar alguns jazzmen a enveredar por essa linha estilística, sendo uma forma de contornar a subalternidade a que estavam atavicamente remetidos pela etiqueta Jazz. Relembremos "Yarnekrow" (1927) de James P. Johnson, rapsódia orquestrada por William Grant Still, então, o ícone da arte musical negro-americana. O pianista de Harlem ainda compôs a ópera "De Organizer", com libreto do poeta negro Langston Hughes. Recordemos também a ópera "Treemonisha", de Scott Joplin, ou por que não, William Christopher Handy que também compôs música sinfónica para competir em concursos Harmon, ainda que não houvesse logrado conquistar qualquer prémio. Como mais uma vez se comprova, a etnicidade marcou, invariavelmente, a música africano-americana, levando-a, assim, ao encontro das suas próprias representações no paradigma cultural instituído e, por consequência, a dirimir as suas questões e conflitos no âmago da sua própria exclusão e nos limites da sua alteridade. No fundo, afirmar a dignidade da arte musical africano-americana tornara-se num equivalente óbvio da aceitação social desta comunidade.

A tradição culta nos E.U.A. patrocinou a educação musical desde finais do século XIX, sendo essa formação assumida como um valor indelével no desenvolvimento da sensibilidade e do gosto, os quais deveriam apoiar-se na música culta europeia. A música tornou-se, assim, parte dos currículos de sistema educativo público e considerava-se uma das componentes fundamentais da formação feminina. Assim se compreende a instituição da Music Teachers National Association, em 1876, cujo primeiro congresso teve assento no ano seguinte. Note-se, igualmente, a criação da National Federation of Music Club, em 1899, uma organização que congraçava mulheres que eram professoras de música ou intérpretes. Será também de referir que esta propensão para integrar o ensino da música nos currículos escolares se reflectiu, com igual ênfase, nas universidades, tendo surgido os primeiros cursos, programas e cadeiras específicos entre os finais do século XIX e o dealbar do século XX. Harvard, Princeton ou Columbia são exemplos notórios.

No âmbito de uma formação especializada, os conservatórios desempenharam um papel único. Por um lado, formaram músicos e compositores e, por outro, prepararam docentes que iriam ser os grandes divulgadores da "música séria". Assim, The Oberlin Conservatory Of Music foi instaurado em 1865, seguindo-se, dois anos mais tarde, The New England Conservatory Of Music e o Chicago College Of Music.

Em 1891, um diploma do 51º Congresso do Estados Unidos instituiu The National Conservatory Of Music, cuja missão seria, sobretudo, criar as fundações para um "Escola Americana" de música, alicerçada na tradição musical culta. A par desta dinâmica actividade pedagógica, surgiram as primeiras publicações especializadas. Destacamos o aparecimento, em 1803, de The Etude, que manteve a edição durante 75 anos, do Musical America, cuja existência se prolongou entre 1898 e 1964 ou, ainda, do famoso The Musical Quarterly, dado à estampa em 1915 e que ainda hoje se publica.

A TRADIÇÃO DA MÚSICA CORAL AFRICANO-AMERICANA

Os coros profissionais marcam presença no manancial de estilos musicais africano-americanos desde os anos vinte, altura em que começaram a pontificar com regularidade nos palcos de concerto e de teatro, assim como eram frequentemente convidados para participar, primeiro, no acompanhamento sonoro dos filmes mudos, depois, para integrar a própria banda sonoro das películas.

Hall Johnson (1888-1970) foi um dos mais proeminentes mentores desta nova tendência associada a grupos corais de concerto. Apesar de ser um violinista bastante conhecido no meio musical de Harlem - tocou em agrupamentos liderados por James Reese Europe, na Southern Syncopated Orchestra de William Marion Cook e em diversas orquestras da Broadway. Johnson possuía um conhecimento profundo dos cânticos negros, uma vez que, durante a sua infância, conviveu com hinos metodistas, canções de trabalho nos campos agrícolas e cantares das gentes da sua terra natal - Athens, na Geórgia. Foi a recuperação dessa experiência musical marcante, tanto no campo da expressão como no plano formal, que incentivou Hall Johnson a assimilar contextualmente - estamos nos anos vinte - essa tradição oral recôndita:

...The conscious and intentional alterations of pitch often made...The unconscious but amazing and bewildering counterpoint produced by so many voices in individual improvisation... The absolute insistence upon the pulsing, overall rythm, combining many varying subordinate rythms." [2]      

Em Fevereiro de 1928, o Hall Johnson Choir apresentou-se pela primeira vez no Pythion Temple, em Nova Iorque, logrando um sucesso imediato que lhe viria a garantir nova exibição em Março, agora no prestigiado Town Hall. Este agrupamento coral albergava vinte membros, tendo sido o resultado de uma célula inicial constituída por oito vocalistas, corria então o ano de 1925. O êxito franqueou-lhe as portas da RCA Victor, para quem gravou ainda em 1928. Dois anos depois, a crescente popularidade de Johnson ofereceu-lhe a direcção do coro para The Green Pastures, uma peça escrita por Marc Connelly e apresentada na Broadway, exibindo em palco noventa e cinco actores e cantores negros.

            Em 1933, Hall Johnson escreveu, encenou e apresentou a peça Run Little Chillum, exibida 126 vezes na Broadway. No apogeu do seu reconhecimento público, criou em 1946, na cidade de Nova Iorque, The Festival Negro Chorus of New York, que almejava sustentar a actividade de grupos corais através de concertos programados com regularidade. A coroar a sua dedicação à música coral, o Departamento de Estado, em 1951, convidou o seu grupo a participar no Fstival de Arters de Berlim, tendo, seguidamente, levado a cabo um digressão pela Europa, durante vários meses.

            Eva Jessye (1895-1992) tornou-se a mulher pioneira dos grupos corais americanos, vindo a ser, igualmente, a primeira negra a notabilizar-se como maestrina de formações corais. Natural de Kansas, foi aí que iniciou a sua formação musical, fixando-se, posteriormente, em Nova Iorque, onde estudou sob a orientação do consagrado William Marion Cook. Após quatro anos de porfia para singrar no meio musical, conseguiu, por fim, em 1926, impor o seu grupo Dixie Jubileee Singers - posteriormente denominado Eva Jessye Choir - em programas de rádio, entre os quais se destaca The General Motors Hour, assim como foi convidada para escrever composições para vários corais radiofónicos, tão em voga nessa época e verdadeiros sustentáculos da carreira comercial dos artistas. Hollywood chamou-a em, 1929, para ensaiar e dirigir o coro que viria a participar no filme Hallelujah, de King Vidor.

            A sua respeitabilidade no mundo do espectáculo ficou canonizada quando George Gershwin a convidou para liderar o coro de Porgy and Bess, em 1935. Durante as três décadas subsequentes, Eva Jessye palmilhou inúmeros países onde a famosa ópera foi levada a cena. O seu contributo inestimável também inclui algumas oratórias da sua lavra, tais como The Life Of Christ In Negro Spirituals (1931), Paradise Lost And Regained (1934) e The Chronicle Of Job (1936).

            Nos anos 30, Wings Over Jordan, fundado por Glenn Settle, um pastor da Gethsname Church, radicada em Cleveland, Ohio, atingiu elevada notoriedade, consagrando-se definitivamente em Julho de 1937, quando estreou um programa radiofónico na estação local, WGAR. No escasso período de dois anos, e graças a uma audiência cada vez mais avultada e entusiástica, haveria de catapultar este agrupamento para as emissões de cobertura nacional da cadeia CBS. Essa arreigada popularidade também o levaria à Europa, sob a égide da United Services Organization, com o propósito de actuar perante as forças militares americanas estacionadas na Europa, durante a Segunda Guerra Mundial.

            A par destes agrupamentos de cariz profissional, e a exemplo do que já se verificara em pleno século XIX, regurgitava uma intensa actividade de grupos corais sob os auspícios de estabelecimentos de ensino, a corroborar, uma vez mais, a íntima ligação entre as instituições de ensino e a prática vocal, ou seja, entre a tradição musical africano-americana e o seu exercício actualizado no quotidiano das escolas e das universidades.

            Poderemos ilustrar essa tendência com The Hampton Institute Choir, sob a direcção de Nathaniel Dett, o seu primeiro maestro negro, que calcorreou as salas de espectáculo do país e da Europa, neste último caso em 1930.

            O Fisk University Choir, constituído por sessenta vozes, ou o Tuskegee Institute Choir - um coro de cem elementos - foram, porventura, os projectos mais ambiciosos, tanto pelo número de intervenientes como pelo repertório, ou ainda pelo programa de actuações. De facto, a generalidade dos coros universitários mantinham-se activos por via da participação em programas radiofónicos e da organização de recitais, para além de receberem amiúde convites para se apresentarem em sessões promovidas pela White House. Como reflexo desta inveterada tradição coral, no início da década de cinquenta, a estação ABC transmitia regularmente, aos domingos de manhã, um programa consagrado à divulgação de agrupamentos corais, "Negro College Choirs", os quais preenchiam esse espaço radiofónico em rotatividade.

            Na segunda metade do século XX, a música vocal africano-americana passou a acomodar influências prementes da estética do Rythm&Blues, designadamente no que concerne ao acompanhamento instrumental, sobrelevando ainda factores estilísticos de cariz individual, cada vez mais notórios na personalidade dos artistas. Nos anos cinquenta, o órgão e as guitarras eléctricas, bem como a bateria, sucederam ao piano e às percussões, para serem acrescidos, já no decorrer dos anos sessenta e setenta, por secções de metais, cordas ou fontes sonoras electrónicas, das quais se destacaram os sintetizadores.

Do ponto de vista formal, as harmonias diatónicas e bluesy eram raramente moduladas e pouco ornamentadas; agora, o piano passa a contrastar vigorosos acordes entre as mãos direita (registo agudo) e esquerda (registo grave), assim como expende material harmónico muito mais complexo, aumentando, por inerência, o grau de exigência aos instrumentistas. A vocalização, por seu turno, enfatizou sobremaneira a expressão dos sons consonânticos (breves e claros) e vocálicos (longos e expressivos). A tradição Gospel, e de um modo geral a vocalização negro-americana, trata o material fónico com uma expressividade incisiva e loquaz, assente na polarização dos efeitos sonoros: a uma profunda guturalidade sucede um gemido; a um som áspero e rugoso contrapõe-se um sussurro mitigado; a um rugido estrepitoso responde-se com um débil cicio. Os vocalistas, com frequência, alteram radicalmente os atributos naturais das suas vozes, quer por razões de teor expressivo, quer de ordem rítmica, tais como mudanças de tempo, por exemplo. No extremo, os vocalistas masculinos precipitam-se em arrojados falsetes e as vozes femininas ousam os registos mais graves. Para reforçar o pendor dialógico das harmonias vocais, intercalam-se partes faladas no texto prescrito, tanto no meio de frases soltas como de estâncias. Conclui-se, pois, que a improvisação actua não só em termos da vulnerabilidade do timbre, mas também na instância textual e no ritmo. "Sister" Rosetta Tharpe, Mahalia Jackson, Clara Ward (fundadora dos Ward Singers), James Cleveland, Bessie Griffin, The Soul Stirrers ou The Staple Singers habitam no panteão da música vocal africano-americana de matiz religioso e ilustram com eloquência as particularidades formais supramencionadas.

            A música coral negro-americana - ou se preferirmos, numa acepção menos rigorosa mas mais generalizada, a Gospel Music - tem seguido o seu curso evolutivo a par da corrente virtuosa da história e da cultura africano-americanas, mergulhando na tradição sem atavismos letárgicos, deixando-se, pois, impregnar pelo mosaico de sons da América negra. Jazz, Soul, Rythm&Blues, Rap, entre outros domínios musicais, compaginam-se nos labores de modernistas como Walter Hawkins, Ben Tankard ou The Richard Smallward Singers. Com tem acontecido recorrentemente ao longo da história da cultura africano-americana, os seus distintos territórios reemergem na matriz edificante de uma pátria comum: as formas de comunicação desenvolvidas durante o esclavagismo, dentre as quais avultam as respectivas canções.

AQUIJAZZ - UM EXEMPLO PORTUGUÊS

AquiJazz é um projecto que cumpre os seus desígnios pedagógicos e artísticos desde Outubro de 2001, sob a direcção da Prof. Barbara Francke. Composto maioritariamente por alunos da Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo (ESMAE), sedeada no Porto, este coro agrega 23 vozes - 6 sopranos, 4 contraltos, 6 tenores e 7 baixos, acrescidos de uma secção rítmica de acompanhamento instrumental - bateria, contrabaixo, bateria e percussão. Durante a sua curta existência, já teve o ensejo de manifestar a sua arte em vários festivais internacionais, nomeadamente no Musikhuset Aarhus, na Dinamarca, onde foi agraciado com um Prémio Especial, atribuído pela Organização do Aarhus Vocal Festival. No passado dia 28 de Janeiro, reincidiu no palco da Sala Suggia da Casa da Música, concerto em que alinhou quinze composições de índoles diversas (Jazz, música popular brasileira, Broadway, música popular portuguesa), aduzidas de dois encores, dada a receptividade entusiástica do público.

Focalizando o nosso comentário na matéria deste concerto, gostaríamos de começar por referir que este agrupamento se imiscui na linhagem estético-musical que constituiu o objecto deste pequeno estudo, tendo sido, aliás, o concerto ora concitado que nos motivou para pesquisar e discorrer sobre esta temática.

      Tal como acontece com os lídimos representantes americanos dessa tradição coral na actualidade, AquiJazz revela possuir um apurado conhecimento histórico e musicológico dessa realidade musical, tão tradicional quanto dinâmica. Apreciámos sobremaneira a contextualização do repertório, evitando-se, desse modo, abordagens historicamente datadas. Relevamos também o modo como foi aproveitada com generosa prodigalidade a formação multifacetada dos vocalistas, tornando o repertório saudavelmente permeável a tendências formais coevas, num gesto conceptual que torna a História num organismo vivo, se quisermos, num manancial de informação e num pretexto para uma interpretação moderna e personalizada das formas e das estéticas convocadas a cada passo. "A Child Is Born", de Thad Jones ou "Moonglow", de W.Hudson, E. Lange e I. Mills, refulgiram no seu brilho original sem, todavia, ficarem amarradas à condição de meros standards; pelo contrário, foram interpretadas a partir das suas virtualidades intemporais, ou seja, como espelhos da sua origem e, sem contradição, como reflexos das suas possibilidades de afirmação no futuro através de cada nova interpretação. Denotou-se, no tratamento de todas as composições - do cancioneiro americano ou de outras proveniências -, essa vontade partilhada de respeitar o testemunho dos autores, mas, ao mesmo tempo, espreitou com argúcia a necessidade experimental de configurar os arranjos originais às próprias intenções pedagógica e criativa imanentes a este projecto. Ensinar significa, nesta óptica, não só recuperar um testemunho, mas também enriquecê-lo na vivência da aprendizagem e, por fim, na sua assumida recriação. Tal como se estivéssemos num laboratório a ensaiar fórmulas alheias, para, num lampejo inesperado, descobrir um outro resultado no acto de experimentação, um postulado inexistente, quiçá, uma renovada composição.

      Barbara Francke, sóbria e diligente, coordenou e orientou o coro tendo por finalidade o aproveitamento judicioso dos naipes vocais e das características dos seus elementos, numa proporcionalidade funcional em que o todo e as suas parcelas foram conjugados para que nenhum deles surgisse numa inequívoca posição de preeminência. A diversidade da ornamentação harmónica ofereceu apelativas cambiantes (o contraste de registos e a polarização de vozes masculinas e femininas), se bem que, por vezes, redundasse em alguns esquemas previsíveis, certamente decorrentes da natureza pedagógica deste projecto musical. O acompanhamento instrumental engastou-se com naturalidade no corpus coral, operando equilibradamente como sustentáculo rítmico e/ou indutor de texturas na massa sonora coral.

      Em suma, AquiJazz revelou-se um laboratório de aprendizagens da arte vocal africano-americana, honrando essa memória ancestral com estudo reverente dessas formas e realizações, assim como, sem perturbar o equilíbrio da formulação, experimentando outras soluções e produzindo singulares resultados. AquiJazz actuou sempre com simplicidade juvenil, elegância de atitudes e aquela leveza de espírito que é apanágio de quem se entrega com humildade à arte de aprender (e de ensinar).

Aqui há bom Jazz!

Luís Trindade

BIBLIOFRAFIA

•¨       Cone, James H., The Spirituals and the Blues. New York: Orbis Books, (1972) 1998.

•¨       Courlander, Harold, Negro Folk Music, U. S. A.. New York: Dover, 1992.

•¨     Fisher, Miles Mark, Negro Slave Songs in the United States. New York: Citadel Press, (1953) 1990.

•¨       Jones, Arthur C., Wade in the Water - The Wisdom of the Spirituals. New York: Orbis Books, 1993.

•¨       Keck, George R. and Sherrill V. Marin, Feel the Spirit - Studies in Nineteenth-Century Afro-American Music. New York: Greenwood Press, 1988.

•¨       Southern, Eileen, Readings in Black American Music. New York: W. W. Norton, 1983.

•¨       _____________, The Music of Black Americans - A History. New York: W. W. Norton, 1997.

 

 

 

                         

 

 



  [1] Afirmações produzidas por Antonín Dvorák in Richard Newman, Go Down, Moses - Celebrating the African-American  Spiritual.

[2] entrevista concedida a Eileen Southern, incluída em The Music of Black Americans; vide bibliografia.

 

Luís Trindade
 
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