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A nova estrela do jazz: Vijay Iyer piano
19-02-2015
 

A nova estrela do jazz

 

Este mesmo Vijay Iyer Trio passou pela Culturgest há dois anos. O que justifica o seu regresso em tão curto intervalo de tempo? O que se alterou na fórmula apresentada que convide a uma segunda dose, proporcionando ao público mais do que o prazer já desfrutado? As respostas só podem ser as que seguem: tudo o justifica e tudo mudou de então para cá…

Acontece que, entretanto, o pianista indo-americano lançou “Accelerando”, o melhor álbum de 2012 para a revista Down Beat e para a internacional Jazz Journalists Association, tendo também a mais importante publicação de jazz do mundo escolhido Iyer, bem como esta sua formação, para outras quatro categorias: Jazz Artist of the Year, Jazz Group of the Year, Pianist of the Year e Rising Star Composer. Mais: no seguimento da edição do disco, o músico recebeu dois prémios milionários, o Doris Duke Artist Award e o Greenfield Prize, e foi convidado a dirigir o Banff Centre’s International  Workshop in Jazz and Creative Music.

Ou seja, de um momento para o outro, aquele que era um valor em ascensão do piano e da composição, mas um entre outros apenas, foi reconhecido como uma estrela de primeira grandeza – nisso impondo-se relativamente aos seus pares em semelhantes circunstâncias, Jason Moran e Craig Taborn. De resto, basta dizer que nunca antes a Down Beat deu cinco distinções ao mesmo artista e que a Doris Duke Charitable Foundation contemplara em anos anteriores os veteranos Bill Frisell, Don Byron e Meredith Monk.

E o que tem “Accelerando” de tão especial, em comparação com o primeiro título do Vijay Iyer Trio, “Historicity”? Sendo um aprimoramento das lógicas deste, e apresentando um trio – o contrabaixista Stephan Crump e o baterista Marcus Gilmore são os outros dois elementos – mais rodado e mais conhecedor do seu mister, o que o torna numa obra fundamental para o jazz criativo de hoje é o facto de ser o corolário do conceito musical que Vijay Iyer vinha desenvolvendo…

Um conceito que vem alterar os pressupostos que existiam sobre o jazz e inclusive, mais latamente, sobre a música. Até “Accelerando”, era normal entender que o caldeirão dos sons era servido por dois tipos de abordagem, um intelectual, resultando numa música abstracta e de complexa estruturação que se aproximava dos campos “erudito” e “experimental”, e o outro físico, visceral, mais virado para a pulsação, para o balanço e para a intensidade expressiva, regra geral entrando pelos domínios da “pop” ou do “free for all”. Com este CD, a mente e o corpo deixam de estar separados, tal como, de resto, há muito defende a ciência médica.

“Accelerando” é um tratado do ritmo com uma relevância que transborda do campo do jazz para inundar outros ramos musicais da actualidade. Aliás, a crítica já comentou, sobre este trabalho, que poderia ser classificado como «hip-hop instrumental», simultaneamente um desafio para a cabeça e um convite para os pés. Música inteligente para dançar, em toda a acepção desta perspectiva – Iyer estudou a fundo (foi esse o tema do seu doutoramento) os mecanismos cognitivos da percepção auditiva e nunca se conformou com a noção, infelizmente comum, de que há só um factor mental envolvido: «Não se trata apenas de música e cérebro, e sim de música, cérebro e corpo reunidos num único âmbito.»

O segredo de “Accelerando” reside todo nesta tripla equação: «O que faço é tentar compreender a música consoante aquilo que o corpo faz, aquilo que o corpo pode fazer em íntima conjugação com a mente, de modo a não ser entendida como uma abstracção que apenas se forma nos nossos crânios, mas como uma experiência física que tem lugar no espaço real.» Algo que até provém do senso comum e que em nada se equivale, por exemplo, à descoberta da pólvora. Ou a matérias menos evidentes como a das partículas quânticas e a da gravidade de Einstein, que Vijay Iyer dissecou enquanto foi aluno – brilhante, segundo rezam as crónicas – dos cursos universitários de Física e Matemática.

A chave desta visão está no ritmo, percebido este como acção, como movimento. «É mais do que uma ligação; trata-se, na verdade, de uma e da mesma coisa – falar de ritmo é o mesmo que falar de corpos em movimento», comenta o novo herói do jazz. Iyer está até a um passo de defender a entrada da música no conjunto das disciplinas da motricidade humana. Ou, porque estética e desporto serão sempre inconfundíveis, não obstante as pretensões da ginástica rítmica e da patinagem artística, pelo menos entre as artes performativas.

Senão, vejamos: «As partes do cérebro que se iluminam quando apreendemos um ritmo são precisamente as envolvidas no esforço de fazermos com que o nosso corpo se mova. E este processo tem um nome: planeamento sequencial motor. Naquilo a que chamamos movimento está o coração da música. É à componente rítmica que reagimos primeiro, e de uma forma muito física, muito profunda. De resto, é o ritmo que nos permite sincronizar as nossas acções quando fazemos algo colectivamente, seja jogar ténis ou bater palmas segundo um determinado “beat”.»

Mas, como traduz Vijay Iyer este quadro conceptual e compositivo com a prática musical que vem abraçando, a improvisação? Para ele, nada de mais simples também, em analogia com o que fazem os mestres do kung fu ou do karate: as rotinas estabelecem padrões e estes são interiorizados. «A linha entre o que é consciente e o que não é depende somente da preparação. Pratica-se algo até ao ponto em que se torna uma segunda natureza. Tudo o que tem estrutura torna-se intuitivo. Aplico esta ideia há quase duas décadas, pelo que agora nem sequer é programática», argumenta.

Este pianista que teve formação ao violino acredita que precisamos de reformar as noções que temos sobre o que “pensar” significa realmente: «Para mim, há modalidades físicas de pensamento. O que é físico não é necessariamente desprovido de um pensamento. Aliás, dizer que não se pensa enquanto estamos a improvisar é injusto para o tipo de detalhe e rigor exigido. No que respeita à improvisação, pensar é agir, sem distinções.»

O repertório que iremos ouvir nesta actuação do Vijay Iyer Trio será, naturalmente, baseado em “Accelerando”. A peça com o título do CD, escrita por este cientista da música para uma coreografia de Karole Armitage, estará, com toda a certeza, no alinhamento, com os seus repetidos processos de aceleração e paragem, sístole e diástole. Assim como estarão as suas agitadas versões de Duke Ellington (que gravou todo um disco de música para ballet, “The River”), Herbie Nichols e Henry Threadgill, bem como de temas do universo da música de dança, ou próximo dele, que têm a marca de Michael Jackson, Heatwave e Flying Lotus.

Nestas leituras, Iyer realiza as mesmas operações a que sujeita as partituras de sua própria autoria: expõe as matrizes rítmicas e manipula-as com requintes de cirurgião. Um cirurgião que é, igualmente, um MC, desafiando os presentes a que mexam as ancas. No meio disto, caem as divisões entre vanguarda e cultura popular, ou entre o património do passado e a construção do futuro. É o caos. Organizado com uma batida “groovy”, divertido, e no entanto muito sério e muito a sério…

 

Rui Eduardo Paes

(crítico de música, ensaísta)

Rui Eduardo Paes
 
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