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Decisões, itinerâncias, qualidades sonoras
05-12-2014
 

Decisões, itinerâncias, qualidades sonoras

O que se vê?

O que vês quando ouves? Que cinema produzes? A música escutada como forma de produzir filmes privados. Sem música não haveria filmes, dirias. Não haveria imagens.

Espectador itinerante

Pensar no espectador nómada. O espectador que não consegue estar quieto, nem sequer no seu lugar – fila G nº 18. O espectador nómada quer, de imediato, um segundo depois de o concerto se iniciar, passar para o nº 19 da fila G. Ou seja, quer mudar mesmo ali para o lado.

Mas claro que isto não termina. O espectador nómada não é um espectador com o popular bicho-carpinteiro; o movimento de um nómada não é o de bater os pezinhos durante largos minutos; o espectador nómada não é nómada apenas nas mãos que não param de passar do cabelo para o nariz, do cabelo para as pernas, das pernas para o outro braço e assim sucessivamente até ao infinito. As mãos nómadas e os pés que não param de bater no solo não formam, no seu conjunto, um espectador nómada.

O espectador nómada é outro assunto:

quer ir para a fila H e depois para a fila A (como é que se vê e ouve perto do palco?) e depois para a fila Z e etc. O espectador nómada precisa dos lugares todos para si.

Anestesia

Anestesia - até em termos etimológicos - como a inimiga da estética e da sua apreciação.

Uma anestesia que não faz dormir, mas que faz um ser humano dizer, sobre todo e qualquer espectáculo: interessante.

De qualquer espectáculo, medíocre ou fabuloso, o anestesiado dirá: interessante.

Uma anestesia que anule o juízo crítico, eis o perigo.

Qualidades sonoras

Doce, salgado, ácido, picante. Pensar nos sabores e nos sons. Pode a música adquirir estas qualidades?

Rugosa, macia, etc. (qualidades sentidas pelo tacto). Pode a música adquirir estas qualidades?

Música azul, música vermelha? Música redonda, música quadrada?

Pode a música adquirir estas qualidades?

A linguagem por vezes classifica o que ouve com adjectivos dos olhos ou com adjectivos das mãos. E tanto que o ouvido perderia se só classificasse os sons com adjectivos dos ouvidos

O que é um bom crítico, um bom ouvinte? Aquele que ouve com os olhos, com as mãos, com o nariz, com o paladar - e com os ouvidos.

Sobre as decisões

Depois da morte de Confúcio (mais ou menos 470 a.C.), setenta discípulos espalharam-se por todo o território. Havia já a tradição dos “conselheiros itinerantes”. Não eram músicos nem malabaristas itinerantes; eram sábios que andavam, de cidade em cidade, de aldeia em aldeia, a ouvir as pessoas e a dar conselhos. Ouviam os problemas e depois falavam.

Pensar nas multidões que rodeavam estes “conselheiros itinerantes”, estes sábios itinerantes, com a expectativa e a excitação de quem rodeia o médico ou o artista. Que curioso E pensar depois, então, numa orquestra como sendo não um grupo itinerante de músicos, mas um grupo de itinerantes-sábios. A música, portanto, o essencial da música, como aquilo que faz com que os espectadores se calem e ouçam.

A colocação de um ser humano em estado de atenção auditiva é a colocação de um ser humano em estado de escuta total - dos pés à cabeça. E a recepção da sabedoria começa quando alguém ouve. É mesmo assim. Exactamente como quem ouve conselhos: aqui os espectadores ouvem música. E, de facto, um bom conselho não é um conselho prático, objectivo, específico, funcional. Um bom conselho é um som que é apropriado de forma totalmente privada pelo receptor e interpretado de forma diferente por cada um. E claro que, neste sentido, a música dá conselhos (a boa música); são incontáveis as decisões tomadas depois de se ouvir determinadas músicas durante determinado tempo.

Elimine-se a música do mundo: as decisões humanas diminuiriam bruscamente de qualidade

(seriam, atrevo-me a dizer, decisões menos eficazes, menos racionais).

Sem música boa como decidir bem?

fim

Gonçalo M. Tavares

 

Nota:

Este texto é a peça final de uma encomenda da Orquestra de Câmara Portuguesa ao

escritor Gonçalo M. Tavares, o primeiro colaborador no programa “O hóspede da OCP”. Em 2014, Gonçalo M. Tavares acompanhou o nosso processo criativo e desta forma contribuiu para o objectivo de continuar a tornar a Música num acto de pensamento transformador da sociedade.





 

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