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Muitos mais minutos de jazz: homenagem a José Duarte
25-02-2017
 

MUITOS MAIS MINUTOS DE JAZZ: HOMENAGEM A JOSÉ DUARTE

Quando o José Duarte iniciou a sua actividade de militância pelo Jazz, em 1958, fê-lo num circuito universitário que tinha então a característica de ser um dos raros espaços permanentes de inovação, de abertura de espírito e de cosmopolitismo em todos os domínios culturais que conseguiam abrir a muito custo uma brecha no panorama cinzento da Cultura oficial do salazarismo. Desde o tempo do MUD juvenil, nos anos do pós-guerra, ao das campanhas eleitorais de Norton de Matos e Humberto Delgado a Universidade tinha-se convertido progressivamente num foro de pensamento e expressão livres que a hierarquia académica já não conseguia conter e que traduzia a inquietação crescente de uma juventude cada vez menos identificada com um regime retrógrado e desacreditado, e cada vez mais sedenta de reatar o contacto com o movimento intelectual do mundo democrático. Era um anseio inequivocamente político, em última análise, e viria a radicalizar-se nesse sentido cada vez mais na década seguinte com as greves académicas de 1961 e 69, muito em especial na sequência do impacte brutal da Guerra Colonial, a partir de 1961. Mas era também, a um nível mais imediato, uma vontade elementar de quebrar as fronteiras do isolacionismo salazarista, de furar as barreiras da Censura, de conhecer e acompanhar as vanguardas internacionais que iam mudando um pouco por todo o mundo ocidental o panorama das Artes e das Letras e de que Portugal se tinha separado artificialmente pela acção conservadora do regime. E era, afinal, uma postura que retomava a herança da Geração de 1870, do primeiro Modernismo e de todo o movimento intelectual progressista e cosmopolita da Primeira República que o 28 de Maio e o Estado Novo tinham vindo interromper violentamente.

Compreende-se assim que fosse no âmbito universitário que surgissem cada vez mais focos embrionários de criação cultural e artística de vanguarda que - com meios sempre limitados e enfrentando muitas vezes obstáculos tremendos criados pela própria Academia, pela Censura e pela Polícia política - lançariam as bases de muitos dos movimento de renovação intelectual mais importantes das décadas seguintes: a Juventude Musical Portuguesa, logo no pós-guerra, com um papel determinante na renovação do gosto musical do âmbito do repertório erudito, os cineclubes universitários que seriam decisivos para a emergência do Cinema Novo, os grupos de Teatro que viriam a estar na génese das principais companhias teatrais independentes dos anos 60 e 70, e toda uma série de movimentos que no âmbito da Música Popular urbana apontavam para novas linhas de criação, desde a canção de intervenção ao conhecimento da Nova Canção francesa e da Bossa Nova brasileira, às primeiras experiências de contacto com o Rock-and-Roll nascente e - naturalmente - ao Jazz.

Não sei se nessa idade o José Duarte tinha um projecto político assumido ao apostar apaixonadamente como o fez desde então - e continuaria a fazê-lo desde então sempre com a mesma paixão - na promoção do Jazz em Portugal. Mas como historiador cultural sei bem, por formação, que os factos históricos falam por si independentemente da consciência explícita dos seus protagonistas. Abrir terreno ao Jazz no universo das linguagens e vivências musicais dos portugueses em plena era negra do fascismo português era abrir um espaço tremendo de liberdade criativa, de comunicação aberta, de expressão individual - ou seja, de todos os valores que o salazarismo mais detestava e mais temia. Era necessariamente despertar para uma realidade multiétnica e multicultural que a postura racista implícita na dominação colonial procurava a todo o custo iludir, revelar caminhos de experimentação estética inadmissíveis para os paradigmas artísticos oficiais, propor uma atitude de vida aberta à ousadia, à inovação e quando necessário à ruptura. E esse era, afinal, um gesto inevitavelmente político.

Quando o José Duarte deu os seus primeiros passos no Clube Universitário de Jazz e na Rádio Universitária, em 1958, não partia do zero, tendo em conta o esforço heróico que na geração anterior tinha sido desenvolvido por Luís Villas-Boas, designadamente com a criação do Hot Clube de Portugal, dez anos antes. Mas era essencial que a causa do Jazz mobilizasse uma nova geração e criasse raízes numa juventude universitária em crescente inquietação política e cultural, e para tal eram necessários novos protagonistas que emergissem dessa mesma camada etária. O papel da jovem Rádio Universitária viria a ser, nesse sentido, providencial.

Em 1958 eu tinha um ano, e por mais precoce que porventura possa ter sido em bebé dificilmente poderia ter sido directamente afectado por esse primeiro esforço jazzístico militante do José Duarte. Mas curiosamente tenho memórias muito claras do meu primeiro encontro regular com esse mesmo esforço qualquer coisa como dez anos mais tarde, por volta de 1968 ou 69, quando, numa fase típica de transição da infância pura e dura para uma espécie de pré-adolescência, tive direito ao meu primeiro mini-rádio de pilhas, que passou a constituir um dos meus amigos mais fiéis. Andaria pelo segundo ano do Liceu e estava por isso sujeito a uma norma doméstica severa de recolher obrigatório às dez da noite que me então parecia de uma injustiça tremenda, mas o meu radiozinho de pilhas, escondido em clandestinidade activa debaixo da almofada, permitia-me furar durante mais uma hora ou duas a crueldade aparente da autoridade maternal e ficar a ouvir num sussurro, com toda a excitação dos pequenos actos de rebeldia infantil, os programas da Rádio Renascença e do Rádio Clube Português. Lembro-me muito bem de alguns - em particular a Vigésima-Terceira Hora e o Tempo Zip, sucessor radiofónico do Zip-Zip, mas também alguma rubricas mais curtas que apareciam intercaladas nos programas maiores.

Uma delas eram Os Intocáveis, uma denúncia inteligente e divertidíssima do mau gosto de algum nacional-cançonetismo reinante em que se fingia partir aos bocados perante o microfone um disco escolhido particularmente horripilante, ao som do lema: "Este disco é intocável, mas felizmente não é inquebrável. Por isso vamos parti-lo". Confesso que a vontade de fazer exactamente o mesmo aos sucessores mais diversos desses abortos musicais, nos mais variados géneros, nunca me deixou desde essa altura. Mas havia outra rubrica que me fascinava e que era anunciada por um "jingle" bem ritmado inesquecível : "um - dois - três - quatro - CINCO minutos de Jazz" Era a entrada num mundo que eu não compreendia bem mas que me despertava uma curiosidade tão difícil de explicar como de lhe resistir, e daí o meu primeiro contacto com nomes que na altura não podia identificar ou compreender inteiramente, mas de que mais tarde me viria a recordar como memórias remotas então já armazenadas no meu subconsciente infantil: Charlie Parker, Miles Davis, Ornette Coleman e tantos mais.

E se me permito este devaneio memorialístico quase confessional, de nenhuma relevância histórica ou pública aparente, é porque tenho a plena convicção de que aqueles cinco minutos de Jazz regulares que foram de algum modo uma sementeira para o meu gosto posterior pelo género foram-no também para o conjunto da minha geração, numa fase em que a Rádio tinha ainda um papel decisivo na formação do gosto do público. E a partir daí, à medida que o meu crescimento como músico e melómano incorporava uma componente de familiarização crescente com o Jazz, que nunca me deixou, fui sempre encontrando no meu caminho, de uma forma ou de outra, a presença activa do José Duarte, ainda que durante muitos anos sem o conhecer pessoalmente.

Mas a paixão pelo Jazz foi ao longo da carreira de José Duarte apenas um dos pilares do seu universo musical, porque ele foi, ao mesmo tempo, um pioneiro igualmente importante na revelação e disseminação em Portugal de outras linguagens musicais também elas marginalizadas pelo "mainstream" das indústrias culturais de massas. Conhecemo-nos por fim precisamente no quadro desta sua outra faceta complementar de divulgador, quando em 1990 ou 1991 - já não me lembro com rigor, mas tinha eu acabado de regressar, recém-doutorado, dos Estados Unidos - me convidou a participar no programa Outras Músicas de que então era autor na RTP e em que se falava pela primeira vez de forma sistemática na Televisão portuguesa do fenómeno fascinante da World Music. Percussões africanas, gamelangs indonésios, Ópera chinesa, cantos religiosos islâmicos e mil e uma outras expressões musicais do Mundo foram assim passando pelos écrans, perante um público fiel que acompanhava o programa, e não será excessivo afirmar que mais uma vez esta presença divulgadora numa emissora televisiva de primeiro plano teve um papel muito considerável no alargamento das perspectivas de uma nova geração de criadores e intérpretes musicais portugueses, despertando curiosidades, sugerindo cruzamentos, evocando parentescos e contrastes entre mundos artísticos distintos. E também neste contexto multicultural, já se vê, a referência ao Jazz era recorrente.

Em 1997, no decurso da minha breve passagem pela Secretaria de Estado da Cultura, na minha qualidade de responsável pela tutela do sector das Artes do Espectáculo no recém-criado Ministério da Cultura, coube-me propor uma reestruturação radical do sistema de patrocínio do Ministério aos promotores de eventos musicais em todo o País. E nessa ocasião eram para mim evidentes dois princípios fundamentais: em primeiro lugar que o apoio do Estado devia ser concedido com base em regulamentos claros e transparentes, e através de um processo de avaliação das candidaturas conduzido por peritos de reputação profissional inatacável; em segundo lugar que o Jazz tinha absolutamente de estar presente nessa política de fomento musical, a par com a Música Erudita, que até então tinha sido o único género privilegiado nesse âmbito. O cruzamento destes dois princípios levou-me à solução, para mim evidente, de convidar o José Duarte para integrar o primeiro júri dos novos concursos, ao lado de peritos destacados da Música erudita como Romeu Pinto da Silva ou José Luís Borges Coelho.

Os resultados dessa avaliação - independentemente do carácter sempre discutível de quaisquer critérios de selecção no âmbito estético - traduziram-se na afirmação clara da legitimidade adquirida indiscutível desta presença dos festivais de Jazz entre o núcleo de eventos musicais apoiados pelo Ministério da Cultura, de tal modo que é para mim um grande motivo de orgulho que esta minha opção tenha a partir de então sido sistematicamente perfilhada por todos os titulares que me sucederam nos vários Governos de todos os partidos. E a qualidade da prestação inicial do José Duarte foi sem dúvida decisiva para credibilizar esta medida junto dos demais avaliadores envolvidos no processo e dos próprios agentes culturais no terreno.

O trabalho de divulgador do José Duarte prossegue ao longo dos anos com o mesmo entusiasmo e a mesma competência, o mesmo respeito pelo património da criação passada e a mesma curiosidade pela experiência, pela ousadia, pelo novo. A par com o prosseguimento dos Cinco Minutos de Jazz da minha infância, que já são hoje uns cinquentões respeitáveis, como eu próprio, o José Duarte tem-se desfeito em seminários, conferências, sessões de animação em escolas e bibliotecas, programas na Rádio e na Televisão, artigos de jornal e publicações em livro - o seu curriculum a este nível aí está para falar por si e seria inútil procurar aqui resumi-lo. Mas não quero deixar de sublinhar dois aspectos fundamentais sempre presentes neste esforço titânico, o primeiro dos quais é o da sua preocupação com a internacionalização do Jazz português num circuito à escala mundial, sempre com referências qualitativas transnacionais que impeçam o desenvolvimento de uma mentalidade paroquial de pequenos cultos locais, e em contrapartida com a divulgação além-fronteiras do melhor que se faz no género no nosso País. A sua ligação à International Jazz Federation, a revistas especializadas como a Down Beat, e a grandes obras de referência e consulta internacional como o New Grove Dictionary of Jazz é sem dúvida um importantíssimo factor de fermento cosmopolita na vida jazzística portuguesa.

Mas pela minha faceta de investigador e de académico, permitam-me que sublinhe ainda com mais intensidade o papel do José Duarte no lançamento da investigação musicológica e do ensino universitário na área do Jazz em Portugal. Formado numa grande Universidade norte-americana que teve sempre, como as suas mais importantes congéneres nos Estado Unidos, um intenso programa de estudos superiores em Jazz - a Universidade do Texas em Austin - sempre fui muito sensível à necessidade de que o mesmo viesse a suceder em Portugal, à medida que a rede de ensino universitário e politécnico no campo da Música se ia alargando e consolidando no nosso País. E foi por isso com enorme satisfação que assisti à criação na Universidade de Aveiro, em 2004, de um Centro de Estudos de Jazz assente precisamente na colecção pessoal de documentação impressa e fonográfica reunida com enorme dedicação - e imagino que com conseiderável sacrifício - pelo José Duarte ao longo de toda a sua vida. A actividade pioneira desse Centro, cujo acervo está já catalogado e disponível online e que, para minha grande satisfação, está integrado na rede do meu próprio instituto de investigação, o Instituto de Etnomusiologia/Centro de Estudos em Música e Dança, tem sido modelar, e articula-se com o trabalho pedagógico que o próprio José Duarte desenvolve na mesma Universidade em cursos livres extremamente populares na comunidade universitária local. Neste mesmo âmbito se deve referir a importância dos muitos ensaios do José Duarte publicados ao longo dos anos sobre esta matéria, no seu estilo irrequieto, assumidamente anti-académico na forma e no estilo mas sempre tão rigoroso no domínio da informação como provocatório na originalidade e intuição das propostas de leitura que nos vai fazendo. Pena é que a revista O Papel do Jazz, que fundou e dirigiu durante a breve existência desta publicação, em 1997-98, não tenha podido contar com os apoios necessários para a prossecução do seu projecto como suporte da investigação, da partilha de informação e do debate científico, no plano nacional e internacional, neste domínio. Espero que no futuro o próprio Centro de Estudos de Jazz possa vir a reatar este projecto.

Por todas estas razões - essencialmente derivadas de uma avaliação objectiva, como musicólogo e historiador cultural, da obra do José Duarte ao longo do último meio século, mas também, se me é permitido mais um toque pessoal, da boa amizade que desde há muito tempo nos une - não poderia deixar de me congratular com esta homenagem que em boa hora a Universidade do Algarve tomou a iniciativa de lhe promover. É uma iniciativa que o honra, certamente, mas que honra também a Universidade portuguesa no seu todo, pelo reconhecimento que assim confere, com a autoridade que lhe é própria a toda uma vida ao serviço da Cultura e, numa acepção mais larga, da própria Democracia portuguesa. Penso que expresso o sentimento dos promotores - aos quais agradeço muito sensibilizado esta oportunidade de me associar à presente sessão - se terminar este "laudatio" formal com a esperança de que o José Duarte nos continue a dar, por muitos e bons anos, "um - dois - três - quatro - MUITOS mais minutos de Jazz".

Rui Vieira Nery

Professor Associado

Universidade de Évora

* texto escrito por Rui Vieira Nery para ser lido na Universidade do Algarve - Faro em 10 dezembro 2009

 
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